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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

“Roma, cidade aberta”, por Lucas Mariz



“Roma, cidade aberta” aborda um fato real freqüentemente ignorado pelo colégio nas aulas de história: a resistência italiana contra a ocupação alemã, sua aliada, na segunda guerra mundial.

Particularmente eu nunca tinha parado para pensar na reação da população frente seus líderes durante os períodos de guerra. Normalmente ouve-se o professor dizer: a Itália, junto com o Japão e Alemanha, formavam o Eixo, e tem-se a impressão de que todas as pessoas do país concordam com a ideologia dominante, como se elas agissem feito um bloco. Quando na verdade não é assim. Daí a importância de filmes como este agora analisado, principalmente pela forma como foi realizado.

Em condições mínimas, Rossellini conseguiu rodar o seu filme, dando um marco inicial para o que iria vir a se chamar neo-realismo italiano. Este diretor mostrou que um filme pode ter qualidade mesmo com baixos recursos. O que importa é a criatividade humana e não o poder tecnológico.

A Itália ficou ocupada nos anos de 1943 e 1944, o filme foi rodado em 1945. O realismo alcançado na película nos dá a impressão não de estarmos vendo uma história que aconteceu, mas que a vemos de fato acontecer. Quase como a sensação de comemorar o aniversário um dia depois.

Levar a verossimilhança ao limite é uma característica do neo-realismo. Entre outras técnicas adotadas por este grupo cinematográfico estão: uso de atores não profissionais, trabalhar com o improviso, locações reais, câmera na mão e planos longos. Normalmente o tema é atrelado ao cotidiano. A idéia é captar as problemáticas de um período, registrando-o para sempre.

Em “Roma, cidade aberta”, inclusive, pessoas do bairro interpretaram a si mesmas, e soldados alemães prisioneiros foram personagens de soldados alemães repressores. Algumas tomadas, como a marcha do exército, são filmagens reais, capturadas nos anos anteriores. Os cenários destruídos são realmente construções abaladas pela guerra. Imagino o nível de emoção por parte dos atores ao reproduzir um acontecimento ainda tão fresco na memória. A comoção transborda os participantes da produção e atinge o espectador.

Os protagonistas são resistentes ao domínio alemão. Por isso, vivem basicamente fugindo das garras dos poderosos. Talvez seja essa a sua maior manobra estratégica. Além da necessidade óbvia de salvarem a própria pele, eles ferem a moral do inimigo mostrando que ele não é tão forte assim. Essa luta desleal lembrou-me bastante a ditadura militar aqui no Brasil.

O lado “família” dos revolucionários é bem explorado. Vemos um governo tirano caçando homens simples, que por serem dignos, são forçados a lutar contra as injustiças. Por sua vez não temos idéia da vida pessoal do vilão. Na verdade, ele só sai do seu escritório uma vez, para uma sala próxima. A escolha de ponto de vista beneficia a maior parte da população italiana da época. Se a intenção é entender o clima de um tempo, então é preciso mergulhar na maioria.

Há vários momentos de tensão em que os principais escapam por pouco de serem pegos pelo exército. Em cada novo ataque o enredo dá um pulo. O espectador não sabe o que esperar. Não é um filme clichê ou previsível.

Por fim, os revolucionários são apanhados, torturados e mortos. Graças a uma traição da amante de um deles. Em troca de um casaco de pele ela entrega o próprio namorado. Na execução do padre, as crianças, também guerrilheiras ao seu modo, assobiam uma melodia indicando que a resistência não irá acabar com a morte daqueles indivíduos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Viagem à Itália – Rossellini, por Bruno Alves Ferreira


Dentro de sua baratinha, com o frescor do ar abafado de uma janela fechada lhe turvando os sentidos abalados pelo seu status de turista indefesa na terra de inocentes primatas italianos, Ingrid Bergman e o sr. Testabunda (é o que parece, sejamos francos) tem seu amor conjugal posto à prova pelo poderoso ardor do fazer nada.

Antes de retomar a história deixe-me argumentar um pouquinho sobre esta experiência singular que tanto sou experimentado: fiscal não-oficial da temperatura ambiente. A arte de fazer nada, ou melhor, como gosto de chamar, ficar à paisana sob uma paisagem distante interiorana é uma arte que contém muitas sutilezas. Primeiro, engana-se quem crê que fazer nada é apenas deitar na varanda como nossos protagonistas. O verdadeiro nada faz (só pra variar esta expressão tão íntima do meu ser) sabe que o estado de ócio puro é algo parecido como atingir um transe budista, só que sem o recitar dos mantras e com muito mais efemeridade. A mente deve esvaziar-se, seu ser derreter sob o sol Napolitano, seu corpo deixar-se tomar pela pressão relativa do ar, como um bebê entorpecido pela papinha nos braços de uma tia peluda.

Voltemos ao casal, antes que o leitor mais cinéfilo e menos filosofo perca-se no texto e volte à sua releitura do Pequeno Príncipe. Embora ainda tenha muito a dizer sobre a ociosidade. Ingrid Bergman, só “man” para os íntimos, mete-se nos cafundós deste país pequenucho mediterrânico (dizem que até europeu!) e junto com seu macho e sua testa de rêgo frondosa experimentam pela primeira vez a doce presença única de um ao outro. Peralá, oigalê, oxalá mano! Exclama o leitor incauto e com um vocabulário por demais eclético. Um casal que nunca teve seu “alone time” (inserção automática de expressão estrangeira para arregalar os olhos dos mais impressionáveis)? Como é que pode uma coisa dessa Batimã? Ainda mais com uma beldade com a ms. man ao seu lado? Só com muita dose de lico de cair o pinto, diria o curinga. Mas enfim, é isso. A presença do outro traz consigo dois males. A discussão da relação e o que fazer com ms. man quando se é um eunuco e Pong com entrada para dois jogadores ainda não foi inventado.

Relação discutida brevemente descobre-se algo que deveria ser mais óbvio que a elefantíase na testa do maridão: Não há relação. São um casal ligados através dos outros e quem sabe, casados através das expectativas dos outros (ecos de torneiras de pias de cozinhas britânicas suturam meus ouvidos com suas chamas do social realismo). Quando sozinhos descobrem-se desconhecidos com um rancor quase infinito que só é vencido pelo ímpeto de manterem-se à distância um dos outros. Ele procura fugir do ócio através de... Peralá!

Voltemos ao ócio enquanto a chama ardente (ai meu dedo!) da inspiração reflexiva dos enigmas da vida arde nas minhas entranhas (lá ele). É importante, que na sua atividade de não-atividade, a presença do outro seja eliminada de qualquer forma. De forma rude, dizendo-lhe um sonoro “Vá-te-se embora vade-retro satanás cruz credo da mão boba!” ou de maneira furtiva convidando-o para uma sessão morde fronha das tardes melodramáticas do TCM (Turner Classic Movies, só pra alongar este parágrafo). Também é importantíssimo cessar qualquer estímulo visual e sonoro que possam estimular algum mísero neurônio à cometer uma viagem milisegundos luz na sua massa cinzenta. Escutar música é estimular o cérebro. Então nada de trios mexicanos cantando o tema de Maria do Bairro. A verdadeira ociosidade é uma atividade de baixo custo glicósico. Tornas-te um semi-morto em contato com forças nunca dantes navegadas. Aliás, navegação, taí uma metáfora usada pelos projetos de paisanos que populam esse filme. Chegam à comparar a boa vida de ociosidade ao navegar de um navio, à deriva para onde o vento o levar. Meus filhos que não sabem o que dizem, derivar “il mare” é boiar, e boiar é oferecer resistência, é eliminar glicose preciosa no funcionamento da arte de não funcionar.

Os leitores mais espertos, com uma testa que não pareça a coxa do garoto Michelin como o maridão já notaram que eu não presto. Novamente enchendo a lingüiça com um vigor ímpar. Estou envergonhado e cessarei minhas reflexões por enquanto para me focar unicamente no filme.

Ele procura fugir do ócio atráves da comunhão boêmia (mulé). Ela procura através das cartas (haja paciência pra jogar paciência) e de homens sarados em mármore. Diga-me você leitor quem faz a melhor escolha e digo-te tua opção sexual. Enfim! O que a ms. man descobre é que sua vida é um verdadeiro vazio que aparentemente só pode ser preenchido pelo amor de um rebento. Deduzo isso através das inúmeras grávidas feiosas que apareceram durante o filme. O que o da testa peitoral descobre é que pegar mulher nem sempre é fácil, por mais oferecida que ela seja. Descobriu o Brasil.

Mas o meu tempo se encerra e meus comentários estão apenas começando... supostamente! Nunca confiem numa narrativa em primeira pessoa! Penso no que dizer e o tic-tac (do relógio adorável anta, não a bala) me empurra com tudo para uma conclusão incerta. Afinal, Bruno, tome vergonha na cara e sintetize uma opinião antes do fim desta resenha, me diz meu anjinho amiguinho de nome Vadinho que é personificado por este bigodinho ralo e charmoso.

Te atendo Vadinho! É um filme bacaninha que permite-se abster-se de certas convenções cinematográficas. É como um belo foda-se, ou com elegância, fornique-se para as regras do cinema. É um prazer assistir um filme que se abstêm de irrelevâncias como trama e direção. É um filme para se aproveitar da presença da ms. man em seus museus, vulcões e tumbas, com sua melancolia acentuada pela sua permanente cara de choro. Poxa, não tem pra mim? Pergunta-se ms. man cercada pela morte histórica. A resposta vem só no fim, aonde levada como uma lepre sendo surrado por uma gangue de tartarugas com machados, é socorrida pelo seu maridão e sua testa dentro de uma testa. Melodramaticamente, ou seja, de maneira tosca e irreal, meio kistch, meio brega, tipo assim, sacumé, tudo se conclui com um mudar de temperamento e humores mais mágicos que o cinegrafista que conseguiu enquadrar essa testa do maridão no filme. I love you, bebê! E seremos felizes para sempre. Kracauer concordará, pois chegou a dizer o alemão polêmicuzinho que o final feliz é mais adequado por dar uma sensação de continuidade. Teorias idiotas de lado. É o que recebemos. E tememos com este fim, happy together, pela eventual morte de ms. man esmagada pela testa pantagruélica do maridaço.

"Viagem à Itália", por Igor Calado


Realizado em meio à paixão que arrancou Roberto Rossellini de sua musa anterior, Anna Magnani, e Ingrid Bergman de sua carreira e marido nos Estados Unidos, Viagem à Itália (Viaggio in Italia) é o terceiro filme de uma intensa colaboração artística, benéfica não só para o cinema (incluindo-se aí o nascimento da atriz Isabella Rossellini, filha do casal), como também para as revistas de fofoca da época.

O affair que uniu a estrela sueca de Hollywood ao nome forte do neo-realismo italiano recebeu críticas de todos os lados: Los Angeles ressentiu-se da fuga de sua atriz predileta; os moralistas europeus e, principalmente, americanos, condenaram a pouca vergonha; os intelectuais neo-realistas viram, a cada novo filme de Rossellini com a atriz, o distanciamento progressivo do realizador em relação à ideologia inicial do movimento. E os respectivos cônjuges, obviamente, não se sentiram confortáveis com um abandono “artístico-amoroso” tornado público.

A diferença entre este e os títulos mais icônicos do neo-realismo fica evidente desde a sinopse: um casal burguês britânico, Katherine e Alex Joyce (Bergman e George Sanders), viaja para Nápoles com o objetivo de vender a casa de um parente recentemente falecido; na jornada, repensam seu relacionamento, que entra em crise. Uma descrição que certamente remete mais aos casais problemático-existencialistas do diretor Ingmar Bergman que aos temas de guerra e preocupação social que marcaram a vanguarda italiana – assuntos presentes nos clássicos do movimento, como Ladrões de Bicicleta (1948), de De Sica, e Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946), do próprio Rossellini. E essa heresia artística não foi bem digerida entre os italianos.

Em sua nova fase, iniciada pouco antes dos primeiros filmes com Ingrid, Rossellini sofreu duras críticas em seu país, apesar de ter sido saudado pela crítica francesa. A diferença de recepção a seus filmes culminou com uma carta escrita pelo crítico da Cahiers du Cinéma, André Bazin, endereçada a Guido Aristarco, editor-chefe da revista Cinema Nuovo,. Intitulado “Em defesa de Rossellini”, o texto se tornou testemunho da evolução do movimento, além de famosa e inteligente defesa do diretor.
A história do casal se passa calma e lentamente, sem acontecimentos marcantes, pontuada pelas saídas turísticas de Katherine (bastante semelhantes às peregrinações sem objetivo dos personagens do diretor Michelangelo Antonioni). Desde o início da película, dirigindo nas estradas italianas, os Joyce já sentem o estranhamento que se instala entre os dois quando deslocados de seu ambiente usual. As coisas pioram pouco a pouco, a cada comentário sarcástico, repreensão, discussão – e assim o diretor disseca um casamento burguês e a crueldade que faz parte dos relacionamentos, mas também sua beleza.

Apesar da câmera acompanhar as descobertas do casal britânico no país latino (e registrar suas reações e opiniões), a direção foge do erro comum do deslumbramento estrangeiro, filmando a paisagem e as peculiaridades da região sem exotismo. Isso se dá provavelmente graças à nacionalidade italiana do diretor, cuja familiaridade com o ambiente parece estar impressa nas imagens mais que as sensações do casal em relação ao lugar.

O uso de atores hollywoodianos, falando em inglês, também poderia ser uma ponto negativo do filme, mas tendo integrado esses elementos à história com maestria, Rossellini escapa novamente de um erro comum: o emprego da língua inglesa (e de elenco “internacional”) sem nenhum fim estético, o que acaba por deixar muito claro um viés comercial da escolha. A falta tem sido freqüente no cinema contemporâneo e certamente não contribui para o multiculturalismo; no que tange a isso, Viagem a Itália parece colaborar com as discussões, mesmo sem se aprofundar no tema.

Apesar das muitas diferenças com o movimento, elementos típicos do neo-realismo são facilmente observáveis no filme, principalmente a “desdramatização”, inovação amplamente difundida dentro da vanguarda e que a caracterizou fortemente. Essa técnica narrativa pregava a ênfase nas ações dos personagens, observadas com um distanciamento crítico em detrimento ao apelo emocional, e o abandono dos elementos típicos do “espetáculo”, até então comuns no cinema italiano.

Mas essas inovações foram incorporadas somente até certo ponto, porque o neo-realismo nunca se livrou completamente dos resquícios melodramáticos, tampouco restou imune às influências do noir americano, do qual era contemporâneo. Por mais que se prezasse por uma visão prosaica do que se passa na tela, os neo-realistas não se furtaram a despertar (manipular, talvez) a tristeza ou a compaixão do público com os sucessivos infortúnios de seus personagens, como as lágrimas de Bruno em Ladrões de Bicicleta e o próprio desfecho desse filme. Nem de empregar femmes fatales aqui e ali, como em Roma, cidade aberta, e criar personagens feitos sob medida para odiar, como em Alemanha ano zero.

Em Viagem à Itália, as brigas do casal têm pouco de sua carga emocional transmitida ao espectador, que não possui identificação clara com os personagens. Rossellini prefere empregar o já citado “distanciamento crítico”: a discussão é observada mais que sentida – abordagem que continua durante todo o filme. Nota-se aí a semelhança com o estilo documental da escola neo-realista, que dava considerável importância ao registro. Rossellini tenta o mesmo, com um efeito instigante: salvo raras ocasiões, os pensamentos dos personagens são relativamente inexplicados pelo diretor, sua linha de raciocínio é, na maior parte das vezes, oculta, obrigando-nos a um complicado esforço de empatia psicológica.

No plano formal, o rompimento é maior: há um abandono da estética do documentário, que privilegiava uma imagem acinzentada e uma câmera discreta. Rossellini opta por uma fotografia com movimentos simples, mas expressivos, e a manipulação estética do contraste, incluindo excesso de luz em diversos planos. Há também planos subjetivos pouco ortodoxos, que incluem inclinações de eixo e ângulos que fazem suspeitar se o plano é realmente um ponto-de-vista. A câmera continua, entretanto, a não tomar parte na ação.

A edição também é mais elaborada, criando confusões no espectador em determinados pontos: alguns planos, separados por cortes simples e que supomos que se sucedem no tempo, na verdade escondem uma elipse de tempo que só é percebida com algum atraso – e estranhamento.

O tratamento do espaço narrativo é sofisticado: de forma tênue, o diretor cria uma correlação entre os ambientes, notadamente os pontos turísticos visitados por Katherine, e o estado interno dos personagens. À medida que o abismo entre os dois se aprofunda, a inglesa conhece lugares cada vez mais mórbidos da região, começando por museus, passando por vulcões e chegando a templos repletos de caveiras. Esse artifício conhecerá seu aprofundamento máximo na obra de Antonioni, de forma menos temática e mais visual, através principalmente da composição.

O tema do casamento em crise já prenuncia uma problemática cara ao cinema moderno: possivelmente uma maladia social do pós-guerra (talvez aquilo que Antonioni chame de “Mal de Eros”), a crise do casamento e dos relacionamentos amorosos é tema recorrente nos filmes do período, a exemplo da filmografia do cineasta “existencialista” Ingmar Bergman (sem parentesco com a atriz); das obras do já citado Antonioni, em especial A Noite (1961); e nos filmes do cinema noir, que questionava as relações amorosas e de confiança entre os gêneros.

Uma crítica sutil aos personagens burgueses também é uma questão que será bastante aprofundada no cinema europeu do pós-guerra, especialmente por Antonioni e Federico Fellini. Uma passagem numa festa, quando a personagem de Bergman se diverte em meio aos italianos e o grupo discute o dolce far niente, lembra o clássico La Doce Vita (1960), de Fellini, retrato ácido da burguesia desse período.
O sobrenome Joyce também não parece ter sido uma escolha aleatória: remete ao escritor irlandês James Joyce, pilar da literatura modernista. E o esvaziamento narrativo que Rossellini emprega – um despojamento da trama em detrimento de outros aspectos estilísticos, a conhecida “história onde não acontece nada” – é outro recurso que se tornará comum no modernismo.

Contudo, ao contrário do pessimismo que tomará conta do cinema nas décadas seguintes, Rossellini encerra seu filme com uma boa dose de otimismo e com um espiritualismo que, freqüente no resto de sua obra, é outro ponto de divergência com o neo-realismo.

Apesar de elogios de André Bazin, François Truffaut e Jacques Rivette, críticos da Cahiers que perceberam no filme o início do cinema moderno, Viagem à Itália não foi bem sucedido nas bilheterias. De todo modo, sua influência não pode ser negada e o leque de inovações temáticas e estéticas do filme faz dos realizadores modernos eternos devedores de Rossellini.

"Viagem à Itália", por Natália Ribeiro Barreto


Durante uma viagem à Nápoles, um casal, visivelmente burguês, é obrigado a lidar com os entraves de um casamento em crise e reconhecer o fato de que se desconhecem, mesmo após oito anos juntos. Pela própria diferenciação do enredo, com Viagem à Itália, Rosselini extrapola os anseios neorrealistas no que diz respeito à apreensão de um real flagrante, configurado numa estética crítica e politicamente comprometida. Com um estilo despojado e, ao mesmo tempo, profundo, Rossellini atua como o “diretor-curioso”, que extrai o ficcional a partir de uma observação atenta das coisas ao seu redor, permanecendo sensível aos conflitos psicológicos dos sujeitos atuantes na história.

Nesse sentido, somos quase que convidados, juntamente com as personagens, a descobrir as paisagens napolitanas e seu universo épico. Assim como o diretor, as personagens principais, Alex Joyce (George Sanders) e Katherine Joyce (Ingrid Bergman), demonstram a nítida ânsia do olhar, do conhecer e do vivenciar. Enquanto a pretensão de Alex, na viagem, resume-se à diversão com os amigos e ao contato com outras mulheres, Katherine quer registrar sua visita com passeios aos museus e monumentos históricos.

Assim, ambos circulam pelos cenários em busca de novos sentidos e descobertas, contudo, o fazem por caminhos divergentes, o que constitui um paradoxo a ideia de casal. Ao mesmo tempo em que não se suportam, eles insistem em fazer “jogos neuróticos”, com acusações, demonstrações de ciúme, confissões arrependidas e irônicas.

Curiosamente, há na história personagens que exercem papel narrativo, mesmo não estando, concretamente, presentes. É o caso do tio Michael e do poeta da juventude de Katherine, Charles. O primeiro ainda evoca a memória da guerra presente no fluxo de consciência social; já o segundo, representa o que há de mais imaterial e transcendente no ser humano.

A fluidez narrativa requerida por Rossellini configura-se na flexibilidade do roteiro de seus filmes, com personagens pouco encenados, no intuito de que a espontaneidade dos atores pudesse doar maior vivacidade aos personagens. Se Ingrid Bergman - esposa de Rossellini na época - já se mostrava acostumada a esse método, George Sanders incomodava-se.

Nas palavras do próprio Rossellini, “Viagem à Itália mostra esta atmosfera na qual se encontra misturado um sentimento bem real, bem imediato e profundo, o sentimento da vida eterna que é algo que desapareceu completamente do mundo” (ROSSELLINI: 1984). Os passeios de Katherine pelas ruas de Nápoles, enquanto olha casais de namorados, mulheres grávidas e carrinhos de bebê, constitui uma metáfora da própria vida, no que esta tem de efêmera e permanente. O próprio Jacques Rivette, ressalta, em Viagem à Itália, a capacidade de Rossellini produzir uma obra de sentido tão denso, a partir de elementos tão simples: um casal e um carro. Ainda de acordo com ele, Katherine e Alex seriam os seres mal configurados pelo tédio e pela inexatidão de suas existências.

O elemento religioso permeia toda a trama, seja materializado nas inúmeras igrejas, imagens de santos e procissões ou embutido no ânimo dos personagens. Uma vez que o divórcio mostra-se iminente e inevitável, Katherine representa - mesmo não sendo entregue a beatices - aquela que espera e crê, constantemente, num milagre que venha a salvar seu casamento, enquanto, Alex, descrente, resigna-se e demonstra indiferença. O milagre, ironicamente, vem, não da força sobrenatural que os atinge, mas da própria iniciativa do casal: ao perceberem que não conseguiriam se afastar, declaram-se e unem-se, o que remete, indiretamente, à cena na qual os restos do casal, mortos juntos em Pompéia, são encontrados. Mesmo que os amantes sejam o elemento passageiro, o sentimento que os enlaça é perene.

"Roma, Cidade Aberta... Para o Neo-Realismo", por Wilson Rocha


Roberto Rosselini sempre foi um outsider. Quando Hollywood o convocou para dirigir filmes na indústria cinematográfica mais profissional do planeta ele recusou, pois não acreditava num cinema que se pusesse à margem da população e que se exprimisse apenas o que era comercialmente válido. Ele era contra o chamado star system tendo em vista não concordar no distanciamento e na aura de celebridade construída pelos donos dos estúdios americano em torno de seus atores e atrizes.

Roma, Cidade Aberta marcou, simbolicamente, o início de um movimento que vinha se formando há anos atrás e que teve origem durante o regime fascista de Mussolini tendo firmado-se no pós-guerra: o neo-realismo. Este movimento cine-artístico fundamentou uma estética na linguagem do cinema mundial influenciando diretores do mundo todo, quando vários diretores italianos como Vittoria De Sica e Luchino Viscontti, dispondo de poucos recursos, provaram que era possível fazer um cinema de alto nível, utilizando atores não profissionais e locações externas e reais para retratar os dramas e problemas ligados ao cidadão comum e a sociedade em que ele está vinculado num contexto de denúncia e crítica.

Não foi um movimento consciente como se deu com a nouvelle vague e seus ditames expressos e definidos via o oráculo Cahiers du Cinema - André Bazin. As condições econômicas e estruturais de um período de guerra e pós-guerra determinaram uma limitação de se fazer filmes de forma extremamente econômica. O talento, a sensibilidade, a criatividade e a improvisação foram os grandes destaques dessas produções.

Em Roma, Cidade Aberta (um dos filmes que juntamente com Paisá, de 1946, e Alemanha Grau Zero, de 1948, fazem parte da trilogia da guerra dirigida pelo mesmo cineasta) Rosselini mostra um episódio no qual a força invasora realiza investigações contra grupos de libertação que lutam contra a invasão dos germânicos no país.
Comovente pela força melodramática que está embutida na própria história, Roma Cidade Aberta transforma em heróis a massacrada população proletária de uma bairro em roma no período de dominação alemã, que, embora resistente e engajada, sucumbe, por vezes, aos assaltos das forças invasoras.

Pina (Anna Magnani, uma das poucas intérpretes profissionais) grávida e assassinada pelos policiais ao correr atrás do caminhão que mantém preso o seu marido, rebelde às forças de ocupação, é uma das cenas mais trágicas da cinematografia mundial.
As crianças se situam dentro de uma esfera de ingenuidade parcialmente corrompida, organizando-se em milícia contra os agentes agressores, mas ao mesmo tempo subordinando-se aos castigos das palmadas de seus pais e as aulas de catecismo. A indicação do que é aceitável é evidente neste paradoxo comportamental.

Os dramas vão se sobrepondo em proporções dolorosas e irremediavelmente previsíveis (puro neo-realismo). O cerco armado pelas forças alemãs estão se fechando cada vez mais e com a ajuda de informantes, o chefe nazista encarregado de dissolver a organização guerrilheira italiana, o major Fritz , vai juntando pistas que acabarão levando suas forças aos cortiços de Roma ameaçando a segurança não só dos fugitivos ativistas italianos como a de suas famílias.

O filme todavia mescla situações de comédia e de sátira o que proporciona mais leveza e uma dose de humor inteligente a um tema com essa densidade. A cena em que o Padre e o coroinha tentam disfarçar seus reais motivos para adentrar num prédio desocupado pela gestapo tendo como mote a realização da cerimônia de unção de um doente é digna de figurar entre uma das melhores da história. Outro momento polêmico é o do saque a padaria, que num determinado momento é condenado pelo sacristão, até que o mesmo convencido pela fome se junta aos ‘criminosos’ na apropriação dos pães.

Outra marca importante do diretor italiano é a sua crença religiosa e ela mais do que em outros trabalhos desta fase do diretor, aparece nitidamente. Ele destaca a influencia da religião como agente não apenas da manutenção da fé mas também da liberdade. Em todo o conjunto de sua obra, Rosselini promove a necessidade de uma atuação concreta por parte da igreja católica frente as dificuldade enfrentadas pela comunidade e em Roma, Cidade Aberta, isso é ponto chave. Dessa forma o padre detém o foco principal durante o filme. Ele é o contrapeso que impede a violência total, mas que proíbe a inércia e a omissão.

O neo-realismo provou numa época dominada pelas suntuosas produções da época de ouro do cinema norte-americano, que se podia fazer filmes atraentes e de qualidade, sem um alto investimento e conectados a realidade.