sábado, 14 de fevereiro de 2015

India Song – Marguerite Duras, 1975, por Felipe Leal




Seja em abordagem temática ou estética, a produção audiovisual que Marguerite Duras realizou, se inserida na leva de cineastas da pós-nouvelle vague, destoa completamente não só daquilo que havia em comum entre estes diretores, como problematiza o próprio fazer cinema – uma possível conexão com seus antecessores, tão revolucionários quanto ela. Todos os seus filmes apresentam um potente e indissolúvel liame com a literatura, de forma a praticamente deixar à imagem uma função secundária. Se o apogeu desse traço foi Agatha ou as Leituras Ilimitadas (Agatha ou les lectures illimitées, 1981), cuja presença literária é marcadamente mais forte do que qualquer potencialidade visual possível, seu filme mais famoso e rico é talvez India Song (1975), que atesta a prevalência do amor absoluto e irrealizável como temática-chave para a autora, tanto quanto explora o jogo de posições entre o verbal e o visual no seu cinema.

Delphine Seyrig é Anne-Marie Stretter, esposa do vice-cônsul francês. Enfadada com a vida opressora da Índia dos anos 30, entrega-se compulsivamente a casos de amor e acaba sujeita aos olhares e comentários de pessoas que não sabemos quem são, mas que estabelecem fios perdidos de narrativas dispersas, estas impregnadas de referências à localidades inventadas e observações dúbias, ora aparentemente vindas dos convidados das grandes festas da embaixada francesa, ora pertencentes à uma camada do extra-campo, espaços estes duplamente ficcionais. Como não poderia deixar de ser, os personagens da trama de Duras são impotentes, tão intenso é o amor que vivem. Aliás, não parece haver vida para além desse amor, como o experienciou a própria autora. Herança de seu legado literário semi-autobiográfico, a paixão como enfermidade é quase a sua pulsão poética, seu motif.

 Mas questão a ser colocada para India Song é que o texto não parece servir como mero acessório estilístico, ou mesmo como elemento predominante sobre a imagem: antes disto, ele estabelece a moldura dentro da qual os personagens entediados do filme se moverão (lentamente). O deleite visual existe e é realçado pelo verbo, mas as fantasmáticas vozes de India Song são mais suturas entre o espectador e os eventos, inscritos ou não na narrativa principal, do que um artifício utilizado para discutir novas estruturas para o cinema. As duas encenações - da voz e do corpo - são sentidas e recebem significado através do espectador, agente que reúne o que as vozes pontuam e o que o corpo ensaia. 

Se o filme de Duras não perpetra as roteirizações com espaços livres para o improviso, como o fizeram Jacques Doillon, Philippe Garrel ou Maurice Pialat, também não deixa de evocar uma subjetividade claramente exagerada e poética, traço que poderia ser atribuído, mesmo que com menor intensidade, a grande parte dos franceses da pós-nouvelle vague. Os ''instantes de vida'' não existem em India Song, cuja mise-en-scène corporal beira o milimetrado, e o diálogo iniciado pelos italianos sobre o realismo ganha, aqui, contornos ainda mais delicados. Por mais que falem de vestígios, ou que cheguem até mesmo a gritar o amor perdido, as vozes que atravessam o filme nos comunicam de sentimentos arrancados de interiores que são invisíveis ao olho: é apenas mais uma maneira de instigar a sensação de realidade do espectador. Naturalidade disfarçada na técnica, mas vibrante no sentimento, eis a genialidade de Marguerite Duras.


Um comentário: