sábado, 14 de fevereiro de 2015

Das memórias vistas, por Raian Oliveira





Fico me perguntando se por acaso gravasse tudo aquilo que vejo, quais seriam as imagens projetadas. Me pergunto quantos momentos e narrativas vão se perdendo com o tempo, sem estarem dissociadas de onde estão inseridas. Por vezes as memórias se materializam de forma a se separarem do momento, dando autonomia para que cada frame fale por si só e anuncie mesmo que em um zumbido inaudível um falso estar lá, “vivendo” aquilo tudo. Discurso esse que aquele que vos escreve se deparou dias antes com algumas imagens de arquivo e áudios aos quais nem lembrava que existissem. Imagens, sons de pessoas e lugares aos quais sofreram com o tempo a alteração de sua leitura. Talvez ter tido contato com isso me fizesse devorar em Paul (Bruno Ganz), em Na Cidade Branca [1983, Alain Tanner], não apenas suas vivências, mas especificamente não conseguir desgrudar o olho de suas fitas de filmagem, e para onde sua filmadora apontava. 

O distanciamento com qual Tanner filma o personagem compreende a não-completude de seu modo de nos apresentar as angústias e pensamentos. Se faz necessário mostrar tudo aquilo que é gravado compulsivamente pelo marinheiro Paul, de forma que a câmera intra-diegética intensifica o papel narrativo em forma de deslumbre, como se naquele momento o filme esquecesse sua estética e seus formalismos para uma imagem mais apaixonada, diria uma imagem de fluxo em que, por mais deslocado que Paul se afirme, ele sofre o peso de estar ali, naquele lugar, em Portugal, mesmo que várias vezes apontada para paisagens onde a visão se perca, sempre em direção ao mar, como quem almeja chegar do outro lado independente do que se tenha, apenas pelo movimento de não estar no mesmo lugar. 

O mar, lugar onde se amarram grande parte das lembranças de Paul, já que sua vida é estar se deslocando, é um ponto onde tudo se fixa mas ao mesmo tempo se perde, assim como as lembranças não exteriorizadas. A cama de Paul serve como apoio de várias imagens. De um efêmero, como mais uma passagem por algum lugar desconhecido, como consumação de trepadas intermináveis, pensamentos sobre sua esposa, descanso e impotência diante de um sangue que mancha seus remendos e, por fim, lugar de nostalgia (para ele, para Rosa). Rosas figuradas em toda a cama, inclusive nos lençóis, em que servem como apoio para suas filmagens, suas narrativas tão mutáveis quanto os estados da água do mar que tanto contempla, que tanto pontua sua câmera, imerso no paradoxo de se sentir parte de algo cuja essência é fluxo de deslocamento.

Por mais que se mostre a visão de Paul, por vezes o observar do lado de fora faz criar uma atmosfera vazia, na qual a vontade por mais daquelas imagens se torne compulsiva, pedindo quase que um abandono de um apego com a tentativa de localização, dos cortes e das imagens milimetricamente organizadas e estáticas por Tanner. As imagens amadoras, basicamente flertando com as de Jonas Mekas, trazem em si um certo deslumbramento ao qual as imagens mais contemplativas parecem carecer de algo, como se faltasse uma certo sentimento naquilo tudo — já que o peso das outras imagens parecem preencher as lacunas do indizível. 

 Nos primeiros segundos do filme uma imagem de um barco no mar surge em uma atmosfera quase de universo paralelo, em que tudo no quadro é infinito. O céu rosado, as ondas calmas e um barco quase se apagando. Um universo de memórias, flutuantes em uma massa que não contém esforços pra engolir o que quer que seja, nos dá a impressão de que a qualquer momento aquele barco possa sumir, seja do campo de visão, seja dentro mar, pra ser enfim esquecido. Mas, é na paixão pelos instantes e na crença do vir a ser eterno que as memórias de Paul se ramificam entre textos, imagens e histórias. Externas e livres dele mesmo, prontas pra serem reinterpretadas, revistas, revividas. E, fazendo crer que por mais que, por mais que seja inevitável o esquecimento de alguns instantes, o próprio ato de se desfazer deles é de puro amor. Pura pulsão a qual não importa quando ou como elas serão vistas, mas serão mutáveis e dignas de sobreviverem além dos próprios realizadores, como resquícios ou vultos de uma existência borrada, à deriva. 

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