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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Recordações da Casa Amarela (Portugal, 1989, dirigido por João César Monteiro), por Carla Bellot




Esta comédia portuguesa conta das palhaçadas de João de Deus (uma versão cinemática do diretor e roteirista João César Monteiro), um magro homem de meia idade que mora numa pensão barata e austera com uma estrita dona. Porém, ele e os outros moradores sempre encontram maneiras a evitar as regras da casa. Eles fumam cigarros contrabandeados e usam a eletricidade da casa sem permissão da dona Violeta. João passa seus dias andando pela cidade de Lisboa, e também observando Julieta, a filha bela da dona. Os acontecimentos do filme são acompanhados pelo diálogo sombrio de João. Coisas acabam mal para ele na pensão, e mais tarde ele é preso para a representação falso de um policial. A prisão é a "casa amarela" que é mencionado no título.

Das suas ações, é claro que João é um oportunista, e não tem vergonha de fazer certas coisas. Um exemplo é quando ele visita a sua mãe idosa para pedir dinheiro; quando fala com ela, parece frio e indiferente às necessidades dela. Também, depois da morte da sua amiga Mimi, uma prostituta brasileira que morava na casa com ele, João invade o quarto dela e rouba uma quantidade de dinheiro que ele encontra lá. Ele não é um homem saudável, pois vai ao médico no início do filme com muitas doenças e reclamações. Ele reclama constantemente para percevejos que poderiam ser um produto da sua imaginação. Há uma vez na qual ele insiste que ele pegou um num pote, mas ninguém mais, não dona Violeta nem a audiência, pode vê-lo. A aparência e a saúde (e provavelmente o estado mental também) de João se deterioram ao longo do filme, e as suas ações e decisões ficam ainda mais estranhas e questionáveis. Logo antes do fim do filme, ele se sente num banco de um parque. Com roupas surradas e uma aparência suja, ele quase parece um mendigo. Durante esta cena, ele conta à audiência que a mãe dele faleceu, porém ele não parece triste ou com remorso.

Julieta, a filha da Dona Violeta, é a joia da vida da sua mãe. Dona Violeta fala sempre da beleza e dos talentos da sua filha, e que ela toca o clarinete na banda policial. A mãe sonha que Julieta se case com um homem rico no futuro, que poderia se beneficiar ela – a mãe -  também. João está obcecado por Julieta, e a observa em momentos privados no quarto dela, e uma vez até bebe a água do banho dela depois que ela saiu do banheiro. Uma vez, ele encontro um pêlo pubiano, e ele o mantém como uma lembrança. Das cenas como assim, a audiência não pode deixar de pensar que João tem as caraterísticas de um “dirty old man”. Há muitas tentativas desajeitadas de seduzir a Julieta, que são quase dolorosas de assistir. No entanto, ele consegue pegá-la no final, e dorme com ela brevemente.

Na minha opinião, uma cena que era bem poderosa foi quando Dona Violeta entra no quarto da Julieta, e encontra João e a filha depois de fazer sexo. Ele joga cédulas de dinheiro (provavelmente os que ele roubou da morta Mimi) em cima do corpo dela, e sai do quarto rapidamente, falando com si mesmo. Violeta diz nada, mas vai mais perto para pegar todo o dinheiro e esconde os cédulas na sua própria camisa. Isto é uma confirmação dos meus pensamentos anteriores que Violeta pensa na sua filha como um fonte de ganhar dinheiro e avanço na sociedade. Após disso, ela corre na rua, acusando João da violação da Julieta, mas os outros moradores apenas riam dela. Talvez elas já sabem de suas intenções de usar a filha para ficar rica, e que Julieta não é tão perfeita como ela aparece.

“Recordações da Casa Amarela” se chama “uma comédia lusitana” nos créditos do início. O enredo do filme e a combinação de personagens interessantes têm potencial para ser engraçado, porém achei que o filme um pouco lento e melancólico, sem muitos elementos de humor. Há muitos espaços de silêncio ao longo do filme, que enfatizam o sentimento de solidão, especialmente com o personagem de João. Os interiores dos edifícios, especialmente o da pensão, são sombrios e sem muita cor ou decoração, e os personagens não parecem ter alegria em muitas coisas.


Quando o filme acaba, não temos certeza do destino do personagem na "casa amarela" com que agora ele está atribuído. O filme é o primeiro de uma trilogia, então nós sabemos que as aventuras de João de Deus vão continuar. Podemos ter a certeza, que ele continuará a sobreviver de sua forma especial, como sempre faz.

Das memórias vistas, por Raian Oliveira





Fico me perguntando se por acaso gravasse tudo aquilo que vejo, quais seriam as imagens projetadas. Me pergunto quantos momentos e narrativas vão se perdendo com o tempo, sem estarem dissociadas de onde estão inseridas. Por vezes as memórias se materializam de forma a se separarem do momento, dando autonomia para que cada frame fale por si só e anuncie mesmo que em um zumbido inaudível um falso estar lá, “vivendo” aquilo tudo. Discurso esse que aquele que vos escreve se deparou dias antes com algumas imagens de arquivo e áudios aos quais nem lembrava que existissem. Imagens, sons de pessoas e lugares aos quais sofreram com o tempo a alteração de sua leitura. Talvez ter tido contato com isso me fizesse devorar em Paul (Bruno Ganz), em Na Cidade Branca [1983, Alain Tanner], não apenas suas vivências, mas especificamente não conseguir desgrudar o olho de suas fitas de filmagem, e para onde sua filmadora apontava. 

O distanciamento com qual Tanner filma o personagem compreende a não-completude de seu modo de nos apresentar as angústias e pensamentos. Se faz necessário mostrar tudo aquilo que é gravado compulsivamente pelo marinheiro Paul, de forma que a câmera intra-diegética intensifica o papel narrativo em forma de deslumbre, como se naquele momento o filme esquecesse sua estética e seus formalismos para uma imagem mais apaixonada, diria uma imagem de fluxo em que, por mais deslocado que Paul se afirme, ele sofre o peso de estar ali, naquele lugar, em Portugal, mesmo que várias vezes apontada para paisagens onde a visão se perca, sempre em direção ao mar, como quem almeja chegar do outro lado independente do que se tenha, apenas pelo movimento de não estar no mesmo lugar. 

O mar, lugar onde se amarram grande parte das lembranças de Paul, já que sua vida é estar se deslocando, é um ponto onde tudo se fixa mas ao mesmo tempo se perde, assim como as lembranças não exteriorizadas. A cama de Paul serve como apoio de várias imagens. De um efêmero, como mais uma passagem por algum lugar desconhecido, como consumação de trepadas intermináveis, pensamentos sobre sua esposa, descanso e impotência diante de um sangue que mancha seus remendos e, por fim, lugar de nostalgia (para ele, para Rosa). Rosas figuradas em toda a cama, inclusive nos lençóis, em que servem como apoio para suas filmagens, suas narrativas tão mutáveis quanto os estados da água do mar que tanto contempla, que tanto pontua sua câmera, imerso no paradoxo de se sentir parte de algo cuja essência é fluxo de deslocamento.

Por mais que se mostre a visão de Paul, por vezes o observar do lado de fora faz criar uma atmosfera vazia, na qual a vontade por mais daquelas imagens se torne compulsiva, pedindo quase que um abandono de um apego com a tentativa de localização, dos cortes e das imagens milimetricamente organizadas e estáticas por Tanner. As imagens amadoras, basicamente flertando com as de Jonas Mekas, trazem em si um certo deslumbramento ao qual as imagens mais contemplativas parecem carecer de algo, como se faltasse uma certo sentimento naquilo tudo — já que o peso das outras imagens parecem preencher as lacunas do indizível. 

 Nos primeiros segundos do filme uma imagem de um barco no mar surge em uma atmosfera quase de universo paralelo, em que tudo no quadro é infinito. O céu rosado, as ondas calmas e um barco quase se apagando. Um universo de memórias, flutuantes em uma massa que não contém esforços pra engolir o que quer que seja, nos dá a impressão de que a qualquer momento aquele barco possa sumir, seja do campo de visão, seja dentro mar, pra ser enfim esquecido. Mas, é na paixão pelos instantes e na crença do vir a ser eterno que as memórias de Paul se ramificam entre textos, imagens e histórias. Externas e livres dele mesmo, prontas pra serem reinterpretadas, revistas, revividas. E, fazendo crer que por mais que, por mais que seja inevitável o esquecimento de alguns instantes, o próprio ato de se desfazer deles é de puro amor. Pura pulsão a qual não importa quando ou como elas serão vistas, mas serão mutáveis e dignas de sobreviverem além dos próprios realizadores, como resquícios ou vultos de uma existência borrada, à deriva. 

domingo, 10 de agosto de 2014

"Tabu", por Daniella Tavares


Na natureza nada se cria tudo se transforma, segundo o químico Lavoisier. Não só para a natureza material das reações químicas é valida a regra, mas para toda manifestação artística. Num mundo em que o novo já perdeu a graça da novidade, Miguel Gomes conseguindo trabalhar com uma forte intertextualidade com o cinema de Murnau e nem por isso o seu filme deixa de ter suas peculiaridades. Em Tabu, além da escolha do nome do filme, como a da personagem Aurora, partirem de nomes de filmes de Murnau; o enredo também sofre a influência do cineasta alemão quando narra a história de amor impossível (Tabu, 1931) e a  história de traição (Aurora, 1927). Tabu dirigido por Gomes assim como o dirigido por Murnau é dividido em dois atos, mas enquanto o deste ultimo começa com o paraíso para depois passar para o paraíso perdido, o de Gomes já começa com a perdição para depois passar para o paraíso, ou seja, há uma quebra no prólogo, o filme começa no tempo atual e pula para o passado.  Característica esta que estar presente não só em Tabu, mas também em ‘Aquele Querido Mês de Agosto’ (2008), produção que pode ser analisada de vários ângulos.
O paraíso perdido, primeira parte do filme, gira em torno de três mulheres: Aurora, Pilar e Santa. Aurora é uma idosa solitária que é viciada em jogos de azar, em quais sempre perde tudo e utiliza sonhos surreais para desculpar o seu vício. Santa, a empregada, sempre pede a ajuda da vizinha dedicada e religiosa, Pilar, para solucionar os problemas da patroa. Embora convivam com Aurora há anos, as duas nada sabem do passado desta. No entanto, Aurora já no leito de morte faz-lhes um pedido: quer um encontro com Gian Luca Ventura. O encontro não acontece, já que Aurora morre antes que Ventura chegue ao hospital e é a partir da sua morte que o seu passado vem à tona. Ventura inicia a segunda parte do filme, Paraíso, na qual conta às duas senhoras a história de amor e crime que viveu há décadas com Aurora no Monte Tabu, um local belo, exótico e imaginário situado na África. Essa segunda parte é contada a partir da memória de Ventura, não contendo diálogos, apenas sons diegéticos. Dessa forma apenas o narrador e a imagem são os responsáveis por nos informar tudo o que sucede.  

Tabu é essencialmente um filme nostálgico, volta a um cinema simples e imagético e é a partir dessa simplicidade que Gomes faz com que seu filme se torne grande. É o tipo de filme que a imagem diz tudo; não é preciso de som, de diálogos ou de cores para compreendê-lo. A volta a uma África colonial descreve o recontro entre passado e presente materializando na questão da memória. Assim Miguel Gomes mostra como o cinema necessita de tão ‘pouco’ para ser maravilhoso.

sábado, 9 de agosto de 2014

“Tabu” (2012) de Miguel Gomes, por Lucas Mendonça Cecchino


O filme Tabu, de Miguel Gomes, foi para mim uma grande surpresa vinda do cinema português. Além de sua bela fotografia, do excelente trabalho sonoro e pelo modo como é narrado, o sotaque português lusitano dos personagens foi um bônus bastante agradável, principalmente na primeira parte do filme onde há mais diálogos.

Tabu de Miguel Gomes remete diretamente ao Tabu de Murnau. Ou seja, Gomes faz quase uma paródia da obra do cineasta Alemão. O enredo desses dois filmes são semelhantes, a começar pela estrutura. Os dois filmes são divididos em dois capítulos, Paraíso e Paraíso Perdido. O primeiro capítulo do filme de Murnau, intitulado Paraíso, trata de um pescador que se apaixona por uma mulher proibida. No segundo capítulo, Paraíso Perdido, eles resolvem fugir para viverem sua paixão, longe das crenças da ilha da polinésia onde viviam, buscando mais liberdade em um lugar civilizado, o pescador no final das contas acaba morrendo e o amor não se concretiza de fato. O filme de Gomes trata sobre o mesmo tema, mas inverte a ordem dos fatos e os capítulos. O primeiro capítulo, Paraíso Perdido, apresenta Aurora (que é outra referência a outro clássico de Murnau) Uma senhora de idade avançada, em Lisboa nos tempos atuais, que sofre de um mal que não é doença alguma, Saudades. Perdida entre o passado e o presente, no fim de seus dias, como num delírio de reminiscência, remete constantemente a alguns crocodilos (presente de seu marido em tempos passados e que tinha certa obsessão por eles) e um tal de Ventura,  sua paixão juvenil . Aurora vive com sua empregada, Santa, uma negra fria e taciturna, que só faz aquilo que a mandam fazer e que conta com a ajuda financeira da filha de Aurora, personagem que nunca vemos, só escutamos falar.Há também a visinha, Pilar, engajada nos movimentos sociais, que é bastante solitária e sofre de um mal pior que o de Aurora, a Melancolia, saudades de um tempo que talvez nunca existiu, entusiasmada por receber uma freira polaca em sua casa para tentar reviver algum contato perdido no passado, em outras pessoas.

Foi necessária a morte de Aurora para que a narração de Ventura desse vida à segunda parte do filme, Paraíso. Assim a narração volta no tempo em que Aurora vivia em uma fazenda no monte Tabu, na África, que foi palco de uma história de amor e tragédia entre ela e Ventura. É interessante o modo como essa parte da história foi produzida, a começar pela filmagem, foi usada película de 16mm para causar essa estética ruidosa na fotografia, que remete a algo antigo. Na primeira parte utilizou película 35mm, que proporcionou uma imagem extremamente nítida e fotografia em preto e branco impecável.  O trabalho de som dessa segunda parte é bastante complexo do ponto de vista diegético. É evidente a mudança sonora na transição entre a parte um e a parte dois. Os ruídos e barulhos dos ambientes onde se passava a primeira parte dão lugar a um silêncio, onde só se escuta barulhos relevantes ao entendimento das ações dos personagens e a narração em over. De maneira que proporcione uma experiência imagética ao espectador daquilo que está apenas na narração, na fala de um personagem. Esse artifício de flashback que Gomes usa é inovador, mas não é novo. Ele reutiliza recursos da época do primeiro cinema e do cinema clássico mudo de maneira muito criativa, mesclando o passado com o presente cinematográfico. Essas referências aparecem ao longo do filme, como a música das primeiras cenas que não deixam de recordar a trilha sonora dos filmes do século XIX. Essas influências de Miguel Gomes denunciam seu fascínio pela gênese do cinema e por Murnau, em uma entrevista ao criticos.com.br ele diz que: “Murnau é uma referência central para quem tiver visto sua obra. Para mim, ele é a materialização mais pura do cinema. Talvez seja o maior diretor de todos os tempos”.

Assim, Tabu trata sobre o ideal de uma paixão entusiástica e aventureira entre jovens de classes sociais distintas em um tom triste e melancólico, colocando os personagens em impasse entre seguir o lado racional e o emocional, retratando as consequências que ambas as escolhas acarretam. Trata da relação neo-colonialista que perdura até os dias de hoje entre Portugal (e países imperialistas) e países africanos, e a imposição cultural. Faz uma homenagem metafórica a gênese do cinema e ao cinema clássico dos anos 30 em um gênero memorialístico que não é nem um pouco cansativo, como outros exemplos atuais que temos. Em fim, são vários os temas que se pode extrair dessa deliciosa obra de Miguel Gomes.


Uma coisa é certa, se existe algum Paraíso para esse cineasta, esse paraíso trata-se da sala de cinema.