O filme Tabu, de Miguel Gomes, foi para mim uma grande surpresa vinda do
cinema português. Além de sua bela fotografia, do excelente trabalho sonoro e
pelo modo como é narrado, o sotaque português lusitano dos personagens foi um
bônus bastante agradável, principalmente na primeira parte do filme onde há mais
diálogos.
Tabu de
Miguel Gomes remete diretamente ao Tabu
de Murnau. Ou seja, Gomes faz quase uma paródia da obra do cineasta Alemão. O
enredo desses dois filmes são semelhantes, a começar pela estrutura. Os dois
filmes são divididos em dois capítulos, Paraíso e Paraíso Perdido. O primeiro
capítulo do filme de Murnau, intitulado Paraíso, trata de um pescador que se
apaixona por uma mulher proibida. No segundo capítulo, Paraíso Perdido, eles
resolvem fugir para viverem sua paixão, longe das crenças da ilha da polinésia onde
viviam, buscando mais liberdade em um lugar civilizado, o pescador no final das
contas acaba morrendo e o amor não se concretiza de fato. O filme de Gomes
trata sobre o mesmo tema, mas inverte a ordem dos fatos e os capítulos. O
primeiro capítulo, Paraíso Perdido, apresenta Aurora (que é outra referência a
outro clássico de Murnau) Uma senhora de idade avançada, em Lisboa nos tempos
atuais, que sofre de um mal que não é doença alguma, Saudades. Perdida entre o
passado e o presente, no fim de seus dias, como num delírio de reminiscência,
remete constantemente a alguns crocodilos (presente de seu marido em tempos
passados e que tinha certa obsessão por eles) e um tal de Ventura, sua paixão juvenil . Aurora vive com sua
empregada, Santa, uma negra fria e taciturna, que só faz aquilo que a mandam
fazer e que conta com a ajuda financeira da filha de Aurora, personagem que
nunca vemos, só escutamos falar.Há também a visinha, Pilar, engajada nos
movimentos sociais, que é bastante solitária e sofre de um mal pior que o de
Aurora, a Melancolia, saudades de um tempo que talvez nunca existiu, entusiasmada
por receber uma freira polaca em sua casa para tentar reviver algum contato perdido
no passado, em outras pessoas.
Foi necessária a morte de
Aurora para que a narração de Ventura desse vida à segunda parte do filme,
Paraíso. Assim a narração volta no tempo em que Aurora vivia em uma fazenda no
monte Tabu, na África, que foi palco de uma história de amor e tragédia entre
ela e Ventura. É interessante o modo como essa parte da história foi produzida,
a começar pela filmagem, foi usada película de 16mm para causar essa estética
ruidosa na fotografia, que remete a algo antigo. Na primeira parte utilizou
película 35mm, que proporcionou uma imagem extremamente nítida e fotografia em
preto e branco impecável. O trabalho de
som dessa segunda parte é bastante complexo do ponto de vista diegético. É
evidente a mudança sonora na transição entre a parte um e a parte dois. Os
ruídos e barulhos dos ambientes onde se passava a primeira parte dão lugar a um
silêncio, onde só se escuta barulhos relevantes ao entendimento das ações dos
personagens e a narração em over. De maneira que proporcione uma experiência
imagética ao espectador daquilo que está apenas na narração, na fala de um
personagem. Esse artifício de flashback que Gomes usa é inovador, mas não é
novo. Ele reutiliza recursos da época do primeiro cinema e do cinema clássico
mudo de maneira muito criativa, mesclando o passado com o presente
cinematográfico. Essas referências aparecem ao longo do filme, como a música
das primeiras cenas que não deixam de recordar a trilha sonora dos filmes do
século XIX. Essas influências de Miguel Gomes denunciam seu fascínio pela
gênese do cinema e por Murnau, em uma entrevista ao criticos.com.br ele diz
que: “Murnau é uma referência central para quem tiver
visto sua obra. Para mim, ele é a materialização mais pura do cinema. Talvez
seja o maior diretor de todos os tempos”.
Assim, Tabu trata sobre o ideal de uma paixão
entusiástica e aventureira entre jovens de classes sociais distintas em um tom
triste e melancólico, colocando os personagens em impasse entre seguir o lado
racional e o emocional, retratando as consequências que ambas as escolhas
acarretam. Trata da relação neo-colonialista que perdura até os dias de hoje
entre Portugal (e países imperialistas) e países africanos, e a imposição
cultural. Faz uma homenagem metafórica a gênese do cinema e ao cinema clássico
dos anos 30 em um gênero memorialístico que não é nem um pouco cansativo, como
outros exemplos atuais que temos. Em fim, são vários os temas que se pode
extrair dessa deliciosa obra de Miguel Gomes.
Uma coisa é
certa, se existe algum Paraíso para esse cineasta, esse paraíso trata-se da
sala de cinema.
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