sábado, 9 de agosto de 2014

“Tabu” (2012) de Miguel Gomes, por Lucas Mendonça Cecchino


O filme Tabu, de Miguel Gomes, foi para mim uma grande surpresa vinda do cinema português. Além de sua bela fotografia, do excelente trabalho sonoro e pelo modo como é narrado, o sotaque português lusitano dos personagens foi um bônus bastante agradável, principalmente na primeira parte do filme onde há mais diálogos.

Tabu de Miguel Gomes remete diretamente ao Tabu de Murnau. Ou seja, Gomes faz quase uma paródia da obra do cineasta Alemão. O enredo desses dois filmes são semelhantes, a começar pela estrutura. Os dois filmes são divididos em dois capítulos, Paraíso e Paraíso Perdido. O primeiro capítulo do filme de Murnau, intitulado Paraíso, trata de um pescador que se apaixona por uma mulher proibida. No segundo capítulo, Paraíso Perdido, eles resolvem fugir para viverem sua paixão, longe das crenças da ilha da polinésia onde viviam, buscando mais liberdade em um lugar civilizado, o pescador no final das contas acaba morrendo e o amor não se concretiza de fato. O filme de Gomes trata sobre o mesmo tema, mas inverte a ordem dos fatos e os capítulos. O primeiro capítulo, Paraíso Perdido, apresenta Aurora (que é outra referência a outro clássico de Murnau) Uma senhora de idade avançada, em Lisboa nos tempos atuais, que sofre de um mal que não é doença alguma, Saudades. Perdida entre o passado e o presente, no fim de seus dias, como num delírio de reminiscência, remete constantemente a alguns crocodilos (presente de seu marido em tempos passados e que tinha certa obsessão por eles) e um tal de Ventura,  sua paixão juvenil . Aurora vive com sua empregada, Santa, uma negra fria e taciturna, que só faz aquilo que a mandam fazer e que conta com a ajuda financeira da filha de Aurora, personagem que nunca vemos, só escutamos falar.Há também a visinha, Pilar, engajada nos movimentos sociais, que é bastante solitária e sofre de um mal pior que o de Aurora, a Melancolia, saudades de um tempo que talvez nunca existiu, entusiasmada por receber uma freira polaca em sua casa para tentar reviver algum contato perdido no passado, em outras pessoas.

Foi necessária a morte de Aurora para que a narração de Ventura desse vida à segunda parte do filme, Paraíso. Assim a narração volta no tempo em que Aurora vivia em uma fazenda no monte Tabu, na África, que foi palco de uma história de amor e tragédia entre ela e Ventura. É interessante o modo como essa parte da história foi produzida, a começar pela filmagem, foi usada película de 16mm para causar essa estética ruidosa na fotografia, que remete a algo antigo. Na primeira parte utilizou película 35mm, que proporcionou uma imagem extremamente nítida e fotografia em preto e branco impecável.  O trabalho de som dessa segunda parte é bastante complexo do ponto de vista diegético. É evidente a mudança sonora na transição entre a parte um e a parte dois. Os ruídos e barulhos dos ambientes onde se passava a primeira parte dão lugar a um silêncio, onde só se escuta barulhos relevantes ao entendimento das ações dos personagens e a narração em over. De maneira que proporcione uma experiência imagética ao espectador daquilo que está apenas na narração, na fala de um personagem. Esse artifício de flashback que Gomes usa é inovador, mas não é novo. Ele reutiliza recursos da época do primeiro cinema e do cinema clássico mudo de maneira muito criativa, mesclando o passado com o presente cinematográfico. Essas referências aparecem ao longo do filme, como a música das primeiras cenas que não deixam de recordar a trilha sonora dos filmes do século XIX. Essas influências de Miguel Gomes denunciam seu fascínio pela gênese do cinema e por Murnau, em uma entrevista ao criticos.com.br ele diz que: “Murnau é uma referência central para quem tiver visto sua obra. Para mim, ele é a materialização mais pura do cinema. Talvez seja o maior diretor de todos os tempos”.

Assim, Tabu trata sobre o ideal de uma paixão entusiástica e aventureira entre jovens de classes sociais distintas em um tom triste e melancólico, colocando os personagens em impasse entre seguir o lado racional e o emocional, retratando as consequências que ambas as escolhas acarretam. Trata da relação neo-colonialista que perdura até os dias de hoje entre Portugal (e países imperialistas) e países africanos, e a imposição cultural. Faz uma homenagem metafórica a gênese do cinema e ao cinema clássico dos anos 30 em um gênero memorialístico que não é nem um pouco cansativo, como outros exemplos atuais que temos. Em fim, são vários os temas que se pode extrair dessa deliciosa obra de Miguel Gomes.


Uma coisa é certa, se existe algum Paraíso para esse cineasta, esse paraíso trata-se da sala de cinema. 

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