sábado, 9 de agosto de 2014

"Uma mulher sob influência", por Sarayana Leite


Nessa obra de John Cassavetes somos apresentados a um retrato pitoresco e com  típicos questionamentos do início de 1970. O filme sobre uma mulher tendo um colapso nervoso revela o auge do estilo do “pai” do cinema independente norte americano. Com a câmera na mão perseguindo os personagens, respirando e transpirando com os atores, buscando apurar o tom humanista e depurar o voyeurismo inerente ao espectador, temos a sensação de tensão que nos submete a zelar por uma família que não é nossa.

O enredo é singelo, Mabel, uma mulher cujas influências de todo um ambiente patológico apenas gradualmente se revelam, ama apaixonadamente seu marido, Nick Longhetti, os amigos de trabalho dele, objetos que possam lembra-lo e todo seu entorno. Ela também se rende a jornada materna devota ao amor que têm pelos três filhos que, ao contrário do marido saturado pelo trabalho, retribuem instantaneamente o amor que lhes é oferecido durante o transcorrer da película. E no contexto da sociedade conservadora da época, ela também se entedia, bebe, toma pílulas, sai à noite sozinha e procura companhia masculina num bar.

Somos totalmente convencidos pela Mabel louca ou pela Mabel carinhosa e gentil. Zelamos simultaneamente pela mulher afetuosa, materna e bondosa e a mesma esquizofrênica, quase sem distinção. Uma loucura quase sempre manifestando “excesso de amor” como causador determinante desse desvio do centro do comportamento dito lógico. As súbitas reações e os trejeitos criados por Gena Rowlands, o olhar melancólico por vezes, afetuoso e otimista em outras, maternal quase que sempre e sua redenção dramática diante do “olhar” da lente da câmera ágil transborda todo drama do impasse íntimo sem recorrer à interpretação que “excede e chuta o balde para fazer-se verdadeira”.

Os planos-sequências da película estão dentre os melhores da filmografia do diretor, uma aula de direção e atuação, havendo espaço para improvisação por parte dos atores e revelando planos cada vez mais imprevisíveis. Cassavetes constrói a maioria das cenas na tensão ocasionada pela consciência do espectador de que tudo aquilo é inadequado, é falho de bom senso, mostrando-nos a complexidade das relações matrimoniais. Limites como, a placa “Private” (privado) na porta da cozinha e as divisórias da casa, separando um ambiente do outro, quase sempre são desrespeitados. A exposição, principalmente emocional, é rotina da família. Os personagens, na maior parte do tempo, têm atitudes invasivas e, mesmo dotados de boas intenções, confundem e desestruturam pessoas e circunstâncias já fragilizadas. De alguma forma, empaticamente rogamos que se fechem as portas, até mesmo para nós espectadores, e haja privacidade para que a família possa respirar no seu próprio ritmo, sem comportamentos invasivos de outrem.


Mas a tentativa de síntese do título é insuficiente. No transcorrer da película Mabel passa de desequilibrada e causadora de problemas à vítima da agressividade ao seu redor. Vemos que os outros são tão loucos quanto ela pairando num ambiente de ambivalência (a casa). A loucura de Mabel, sua insubordinação ou qualquer sintoma clínico é proveniente dos mesmos motivos responsáveis por gerar o resultado de todo drama ocasionado pela exposição, pela garotinha nua, pelo olhar de apreensão do pai dos amigos dos filhos, pelo olhar de julgamento da mãe de Nick e pela música. E nesse artificio Cassavetes não peca, usando muitas vezes a trilha sonora erudita e a ópera em cenas casuais de convívio familiar caseiro, assim conflitando os sentidos visuais e auditivos. Como no momento em que Mabel e as crianças brincam hiperativos ao ar livre e somos atraídos para o clima pessimista de O Lago dos Cisnes. O resquício de tragédia da cena registra o que não é visível nem palpável, é apenas um delírio de consciência pressagiando o que está por vir. 

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