sábado, 9 de agosto de 2014

"A morte do cisne", por Juliana Casanova




Em "A morte do cisne", o diretor Evgenii Bauer reproduz cinematograficamente a trágica novela de Zoia Barantsevich. É um novo passo na trilha de Bauer na busca das verdades sobre o Amor e a Morte, constantes em sua obra como um todo, por exemplo, em Twilight of a Woman's Soul (1913), Daydreams (1915) e Figli della Grande Città (1915).

A aproximação da literatura e do cinema através da encenação de uma obra literária, a revelação de personagens subjetivamente mais complexos, permeados psicologismos, o uso de intertítulos, o plano fixo, a câmera quase sempre estática, nos permite contextualizar, até pela própria cronologia do cinema mundial, o cinema de Bauer dentro ainda do cinema de transição. 

A trilha sonora que apesar de servir como reforço do entendimento cênico e da própria subjetividade, animus, da personagem principal de forma alguma recai na pura e simples redundância, tendo em vista que ela ultrapassa o limite da trama e a onda sonora resvala na nossa sensibilidade de forma aguda. O auge é atingido no fim do primeiro um quarto (1/4) do filme quando Gizella descobre a traição do seu amado, a composição progressiva dos violinos e piano acompanhando a subida das escadas do amado e sua nova amante, Gizella com passos trêmulos e descrédulos até os olhos enxergarem fixamente o casal à janela. 
Nesse momento, o sofrimento de Gizella é o nosso sofrimento e a música colabora pra isso.
O filme apresenta a protagonista, Gizella, cuja boca é incapaz de pronunciar uma palavra, mas a face e a alma cantam o que há de mais belo, segundo seu próprio pai, e vão muito além das palavras. Em uma caminhada na companhia de seu pai, acabar conhecendo Viktor, rapaz de porte altivo e aparência aristocrática, que inicialmente a coloca diante de sua deficiência, a mudez, causando-lhe um desmoronamento, mas que novos encontros inesperados em jardins e passeios em dias ensolarados, faz florescer o Amor. Gizella é absorvida por um encantamento até assistir incrédula e só o seu bem querer e expectativas amorosas despencar pelo parapeito da janela que emoldura Viktor e uma nova mulher. 

Convencida de que o distanciamento físico é a melhor opção pra recompor sua alma, com a ajuda de seu pai, consegue uma vaga em uma escola de dança. ‘Gizella ama dançar, é sua vida, é sua alma’.
Gizella torna-se uma famosa bailarina e realiza apresentações por diversas cidades. Em uma delas surge a figura de Glinskii, um artista fúnebre obstinado a encontrar o verdadeiro significado da Morte, que ao saber da apresentação de Gizella interpretando ‘A morte do Cisne’ acredita, indubitavelmente, que encontrará a resposta para seu delírio sepulcral. Glinskii em busca de um ‘milagre artístico’ e acreditando que a figura de Gizella invoca a morbidez absoluta, convida-a para servir de modelo para uma de suas pinturas. Gizella aceita e durante as sessões Glinski torna-se seu devoto mais fiel. Gizella passa a ser, então, uma entidade espiritualizada, como a deusa de uma paz mórbida, posto que pra Glinski a paz é o que existe de mais sublime e a maior manifestação de paz é a morte. Glinski, como oferenda, lhe cerca de flores, gestos submissos e, por fim, coroa Gizella sua rainha. Gizella passa do repúdio a devoção exagerada de Glinski e ao fomento de um cotentamento e demonstra até, em certa medida, uma reabertura a novos sentimentos apaixonados depois da traumática relação vivida com seu outro amante.
Depois da alegria com o presente de Glinski, uma coroa, segue-se um crepúsculo onírico com aparências e aparições muito reais. Gizella está em foco dormindo e o movimento da câmera se afastando, nos conduzindo dentro do quarto a um distanciamento da figura de Gizella, a sensação de que estamos sendo levados para outra atmosfera, que depois descobrimos serem os sonhos, ou melhor, os pesadelos de Gizella. O tom cromático do filme assume um teor azulado e torna clara a existência de dois planos no filme, o real e o onírico. Gizella é atormentada pelo fantasma de uma mulher envolvida por um manto aparentemente sagrado, lembrando a figura de uma santa, mas que antagonicamente se mostra uma ‘profeta do apocalipse’, que diz ser a dona da coroa que adorna a figura de Gizella e prevê para esta o mesmo fim trágico daquela, que morreu encarcerada no refúgio de Glinski. Vale dizer que a música engrandece o clima de tensão próprio do pesadelo que nos é mostrado e ajuda a compor um contorno de suspense no filme.
No plano real Gizella reencontra Viktor. O reencontro traz à tona sentimentos e sensações que estavam obscuros e perdidos em um limbo do esquecimento, de forma que Gizella é notoriamente abalada. Viktor, arrependido, tenta arriscar um recomeço com Gizella enviando-lhe um bilhete prometendo dedicar toda a sua vida a ela se assim ela quiser. Gizella então, na dúvida entre delírio e realidade, perdoa e resgata todo o amor por Viktor que triunfa em um beijo e promessa de casamento.


Gizella se veste de uma aura muito branca e resplendente que ofusca e confunde o olhar de Glinski durante o que será a última sessão de modelagem e pintura. Glinski percebe a mudança essencial que aconteceu em Gizella e passa a ver frustrado seu ideal de alcançar o retrato da morte através de sua Arte. No auge de sua obsessão e loucura, Glinski enforca Gizella, matando-a em uma tentativa desesperada de recuperar a exaustão e tristeza dos olhos dela pela qual ele se encantou. Concretiza-se, assim, a ‘profecia’.

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