Uma das preocupações do diretor alemão Rainer W.
Fassbinder, importante figura artística do Novo Cinema alemão, eram as heranças
e sequelas deixadas pelo nazismo na Alemanha do pós-guerra. Seu filme Martha,
do ano de 1973, é um exemplo claro dessa preocupação. Embora nesse filme as
alusões à perversão e ao ideal nazista de supremacia do homem, por exemplo,
estejam implícitas, é possível notá-las sob o véu das metáforas. Fassbinder as
constrói de maneira bastante sutil ao por em cena diversas situações do
cotidiano de uma mulher oprimida pelo marido. Martha é uma burguesa de classe
média que rejeitara o primeiro pedido de casamento feito a ela devido a doença
de sua mãe. No entanto, quando Helmut o faz, ela aceita. E é a partir daí que a
sua vida tomará um rumo novo, repleto de privações e receios. A iniciar pela nova residência do casal:
Martha preferia continuar na sua antiga casa, mas Helmut já havia alugado uma
nova casa para os dois -sem conversar com ela, e é a vontade dele que
prevalece.
Há uma metáfora bastante pertinente no filme: a paralisia
de Martha ao fim do filme, que pode ser encarada tanto quanto uma consequência
da opressão e severidade do marido à sua vida (pois é devido a tudo isso que
ela se desespera e causa o acidente) como pode ser visto sob um olhar mais
simbólico e encarada como uma metáfora da sua "imobilidade" diante da
sua situação. Ou seja, o seu marido a repremia de tal maneira que, para ela,
era impossível "andar pelas próprias pernas", pois todos os seus
gostos e vontades iam sendo reprimidos e ignorados, aos quais se sobrepunham os
de Helmut. A música que Martha gostava de ouvir "não era música", um
livro que não lhe despertava interesse fora posto como obrigação de leitura
para que ela e o marido pudessem "conversar" sobre algo... E de início
ela recusa tudo isso. Continua ouvindo músicas de seu gosto e deixa o tal livro
de engenharia civil de lado. No entanto, esse seu ato "rebelde" traz
consequências para ela. O marido some por uns dias e a angustia de sua ausência
e a expectativa de sua chegada a atormentam. Por fim, quando ele retorna, ela
já pôs o disco da "boa música" para tocar e terminara a leitura do
tal livro. Na cena em que Martha fala para Helmut alguns trechos do livro que
decorou, os dois estão de costas um para o outro. E a "conversa" é
mecânica, fria, decorada. É impossível que haja espontaneidade em seus
atos. Tudo o que a cerca a reprime. A casa, que não foi ela quem escolheu, os
móveis (que ela desejara que fossem os de sua antiga casa, mas tal pedido foi
negado pelo marido) e o próprio Helmut, que embora tão perto dela no momento da
cena, encontra-se metafórica e literalmente de "costas para ela".
Todos esses aspectos da atitude dele podem ser relacionadas com algumas das
características do ideal nazista, como é o caso do moralismo, no qual devem prevalecer
"os bons costumes", a "boa cultura". Martha é, inclusive,
proibida de sair de casa para "não por a tentação no seu caminho". É
por isso que Helmut (novamente sem consultá-la) vai ao local onde ela
trabalhava e pede a demissão dela. Todo esse ambiente é marcado pela supremacia
masculina e pela passividade e submissão femininas, que transformam essas
metáforas fassbinderianas numa crítica e num questionamento a respeito das
características nazistas herdadas pela sociedade alemã.
Fassbinder consegue, além disso, mostrar que a
artisticidade de suas metáforas não se limita apenas ao plano da narrativa, mas
torna-se evidente também através da dimensão da imagem e da técnica. Um exemplo
claro disso é a cena em que Martha desce do táxi e passa por Helmut. Os dois
não tinham se conhecido até então e o primeiro "encontro" de ambos é
quase um afrontamento. O tom cheio de pedantismo e desdém com o qual ele pede o
táxi já mostra de antemão indícios de sua personalidade fria e perversa. E a
cena em questão é muito bem pensada e construída: a câmera desliza em 360º e os
corpos parecem ter uma precisão e uma certeza de suas posições e movimentos. A
sequência é bela em diversos aspectos que vão muito além do contexto do filme.
É uma cena que, acima de tudo, tem uma beleza e um ritmo próprios. E do mesmo
modo que tal cena, embora muito repleta de alusões sobre a narrativa, consegue
se emancipar do próprio filme como uma sequência que basta em si mesma, o
próprio filme também vai além dele mesmo. Com suas metáforas, Fassbinder
consegue fazer quase que um filme dentro do filme e, assim, surpreender o
espectador com a complexa simplicidade de sua película.
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