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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Metáforas fassbinderianas, por Larissa Veloso


Uma das preocupações do diretor alemão Rainer W. Fassbinder, importante figura artística do Novo Cinema alemão, eram as heranças e sequelas deixadas pelo nazismo na Alemanha do pós-guerra. Seu filme Martha, do ano de 1973, é um exemplo claro dessa preocupação. Embora nesse filme as alusões à perversão e ao ideal nazista de supremacia do homem, por exemplo, estejam implícitas, é possível notá-las sob o véu das metáforas. Fassbinder as constrói de maneira bastante sutil ao por em cena diversas situações do cotidiano de uma mulher oprimida pelo marido. Martha é uma burguesa de classe média que rejeitara o primeiro pedido de casamento feito a ela devido a doença de sua mãe. No entanto, quando Helmut o faz, ela aceita. E é a partir daí que a sua vida tomará um rumo novo, repleto de privações e receios.  A iniciar pela nova residência do casal: Martha preferia continuar na sua antiga casa, mas Helmut já havia alugado uma nova casa para os dois -sem conversar com ela, e é a vontade dele que prevalece.
Há uma metáfora bastante pertinente no filme: a paralisia de Martha ao fim do filme, que pode ser encarada tanto quanto uma consequência da opressão e severidade do marido à sua vida (pois é devido a tudo isso que ela se desespera e causa o acidente) como pode ser visto sob um olhar mais simbólico e encarada como uma metáfora da sua "imobilidade" diante da sua situação. Ou seja, o seu marido a repremia de tal maneira que, para ela, era impossível "andar pelas próprias pernas", pois todos os seus gostos e vontades iam sendo reprimidos e ignorados, aos quais se sobrepunham os de Helmut. A música que Martha gostava de ouvir "não era música", um livro que não lhe despertava interesse fora posto como obrigação de leitura para que ela e o marido pudessem "conversar" sobre algo... E de início ela recusa tudo isso. Continua ouvindo músicas de seu gosto e deixa o tal livro de engenharia civil de lado. No entanto, esse seu ato "rebelde" traz consequências para ela. O marido some por uns dias e a angustia de sua ausência e a expectativa de sua chegada a atormentam. Por fim, quando ele retorna, ela já pôs o disco da "boa música" para tocar e terminara a leitura do tal livro. Na cena em que Martha fala para Helmut alguns trechos do livro que decorou, os dois estão de costas um para o outro. E a "conversa" é mecânica, fria, decorada. É impossível que haja espontaneidade em seus atos. Tudo o que a cerca a reprime. A casa, que não foi ela quem escolheu, os móveis (que ela desejara que fossem os de sua antiga casa, mas tal pedido foi negado pelo marido) e o próprio Helmut, que embora tão perto dela no momento da cena, encontra-se metafórica e literalmente de "costas para ela". Todos esses aspectos da atitude dele podem ser relacionadas com algumas das características do ideal nazista, como é o caso do moralismo, no qual devem prevalecer "os bons costumes", a "boa cultura". Martha é, inclusive, proibida de sair de casa para "não por a tentação no seu caminho". É por isso que Helmut (novamente sem consultá-la) vai ao local onde ela trabalhava e pede a demissão dela. Todo esse ambiente é marcado pela supremacia masculina e pela passividade e submissão femininas, que transformam essas metáforas fassbinderianas numa crítica e num questionamento a respeito das características nazistas herdadas pela sociedade alemã.



Fassbinder consegue, além disso, mostrar que a artisticidade de suas metáforas não se limita apenas ao plano da narrativa, mas torna-se evidente também através da dimensão da imagem e da técnica. Um exemplo claro disso é a cena em que Martha desce do táxi e passa por Helmut. Os dois não tinham se conhecido até então e o primeiro "encontro" de ambos é quase um afrontamento. O tom cheio de pedantismo e desdém com o qual ele pede o táxi já mostra de antemão indícios de sua personalidade fria e perversa. E a cena em questão é muito bem pensada e construída: a câmera desliza em 360º e os corpos parecem ter uma precisão e uma certeza de suas posições e movimentos. A sequência é bela em diversos aspectos que vão muito além do contexto do filme. É uma cena que, acima de tudo, tem uma beleza e um ritmo próprios. E do mesmo modo que tal cena, embora muito repleta de alusões sobre a narrativa, consegue se emancipar do próprio filme como uma sequência que basta em si mesma, o próprio filme também vai além dele mesmo. Com suas metáforas, Fassbinder consegue fazer quase que um filme dentro do filme e, assim, surpreender o espectador com a complexa simplicidade de sua película. 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

"Trabalhos ocasionais de uma escrava", por Daniella Tavares

O paradigma estabelecido pelo positivismo, de que a ciência promoveria a ordem e o progresso, não fazia mais sentido num mundo pós-guerra. No entanto, Alexander Kluge utiliza esse paradigma para reforçar a crítica à sociedade machista no seu filme Trabalhos ocasionais de uma escrava, 1973.
O filme é sobre a família Bronski, mais particularmente sobre Roswitha Bronski, que além de cuidar dos seus três filhos, tem que trabalhar numa clínica clandestina de abortos para sustentar sua família, enquanto seu marido estuda para se tornar um gênio da química e, mesmo não se responsabilizando por nenhum compromisso com o lar, considera sua esposa com intelecto inferior e demonstra por ela certo desprezo.  Já nos primeiros minutos há o humor seco, a dicotomia rascante, quando é anunciado que Roswitha faz aborto em outras mulheres para que a própria possa ter seus filhos.
Assim, Kluge brinca com a ideia do cientificismo vigente no final do século XIX e início do século XX, pois a ciência deixa de ser algo para o bem comum para ser algo que traga benefícios individuais. Como também faz uma crítica a abordagem da mulher como força produtiva e reprodutiva, na qual o aborto é visto como uma possibilidade de independência da subserviência do desejo masculino de reprodução.
Também Roswitha é tratada como um personagem deslocado, que não encontra seu lugar, o que faz lembrar um filme anterior de Kluger, Despedida do ontem, 1966. Anita G além de ter a mesma atriz como interprete, compartilha com Roswitha o sentimento de deslocamento. Poderia dizer que Roswitha é uma continuação de Anita, Anita é deslocada em tudo, enquanto Roswitha conseguiu estabelecer uma família, mas ainda procura um lugar na sociedade. Essa busca é evidente quando Roswitha deixa de fazer abortos e começa a participar de movimentos sociais. 

            Dessa forma, se tivesse que resumir o filme em algumas palavras diria que Kluge nos apresenta um filme no qual uma jovem conduz uma solitária batalha feminista contra a indiferença da sociedade e a hostilidade das instituições.