quarta-feira, 21 de março de 2007

"O Jules e Jim de Truffaut" por Paulo Carvalho


Realizado a partir do romance de Henri-Pierre Roché, Jules e Jim(1962), a obra prima de François Truffaut, é um híbrido formal. É sabido que o recurso à literatura sempre foi, no cinema, algo bastante aceito. Muitos filmes foram adaptados de romances e peças teatrais.Em Hollywood, por exemplo, trabalharam diretamente como adaptadores e roteiristas escritores proeminentes como Fitzgerald e Huxley. Nesse sentido, Truffaut não esteve à frente de seus antecessores, é verdade. Se há em Jules e Jim um encanto particular é, sem sombra de dúvidas, por ser um daqueles casos raros em que o conteúdo e a expressão se enleiam e conferem a obra total precisão e potência discursiva. Em outras palavras, a história de amor de Jules e Jim não poderia ser, no cinema, contada de outra maneira.
Se a literatura conta com a liberdade imaginativa individual, portanto com nosso pacto de não sufocar demasiado as palavras com as imagens que se desprendem delas, o trabalho do “cinema literário” é de uma delicadeza quase impossível. Uma imagem literária quase sempre surge de maneira difusa, bastante viscosa, poderíamos dizer. Uma imagem duplamente subordinada à matriz textual e à disposição de cada um em gerá-la. Na outra mão, aparentemente, à imagem no cinema nada subordina. A imagem surge ela mesma, impositiva, porque é o que é. Ainda que Truffaut tenha insistido ser “Jules e Jim antes um livro cinematográfico que um pretexto para um filme literário”, não poderá fugir a evidência de ser seu filme uma outra obra.
O filme conta a história de um denso triângulo amoroso vivido na Paris do início do século XX. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) conhecem-se no ambiente vibrante da noite parisiense e logo partilham suas paixões. Pela literatura, pelas noitadas, pelas mulheres. Partilham as mulheres. Eis uma grande amizade vivida na superfície das afecções. Jules e Jim recriavam para si tudo o que viam e tudo o que viam era um ponto recriador da sua própria relação como amigos. Havia leveza e um certo descompromisso com a objetividade do mundo. Havia leveza até mesmo na obsessão por um busto feminino que os arremata e os silencia por mais de uma hora de deleite. Mas Jules e Jim conhecem Catherine.
Catherine(Jeanne Moreau. é a dimensão trágica que faltava à Jules e Jim. Subitamente os amigos são arrastados pelo real mais real que imagem de Catherine produzia neles. Foi impossível não se deixar arrematarem também por aquele busto de mulher vivo, pela encarnação daquela beleza idealizada no Adriático. Catherine apresentou o amor, tal qual como conhecemos hoje, ao romantismo boêmio de dois amigos até então indiferentes ao mundo.
O amor sobre qual o século XX se jogou e quis dele tirar tudo quanto mais não conseguiu tomar pelos caminhos da guerra. O amor igualmente extremado, sangrento e irremediavelmente trágico, ainda que vivaz, potente e purificador. O amor que quis enterrar de vez o romantismo e suas convenções. Esse foi o amor encarnado por Catherine, uma imagem que se debate sobre si mesma pra continuar viva. Catherine aprisionou Jules e Jim, deu-lhes densidade aos seus sentimentos, era uma linha de morte trançada a uma linha de fuga. Catherine deixava-se ser um quadro limpo de mil inscrições possíveis sobre o qual o desejo de Jules e Jim se inscrevia, sobrescrevia. Ao mesmo tempo, Catherine abandonava seus sobrecódigos a cada respiração, de maneira arbitrária como uma respiração. Deixava para trás sua pele ela toda inutilizável, gravada com palavras sem sentido e sem vida. Devolvia o abismo de si mesmos aos amigos Jules e Jim e os convidava novamente a aprisioná-la. Mas cada reimpressão de sentido, cada corrente que se fechava sobre a intensidade de vida que havia em si, Catherine reencontrava o próprio fantasma vazio de si mesma, como a amoralidade que vira moral, ou o relativismo que não consegue se desterritorializar, ou ainda, à maneira de Nietzsche, como um o oriente que não consegue ir ao oriente de si mesmo.
O destino ofereceu Catherine a Jules e Jim. Truffaut nos ofereceu uma imagem que também quer ela pular, ou deixar que pulemos a partir dela, no abismo da imaginação. A busca pelo mais-ser engendrada pelo devaneio da imagem não acontece sem desdobramentos, articulações múltiplas, litígios de forças. Mesmo no romance a imagem está para o texto como elemento de conteúdo repleto de expressão, ainda que a forma desse conteúdo não nos remeta diretamente a forma de expressão originária do código da linguagem. Na genialidade do cinema literário de Truffaut essa relação é duplicada, quadruplicada...E em algum termo invertida, já que a imagem torna-se, na materialidade da película, também um significante. Nos perdemos na potenciação quadrada das articulações da língua, já não conseguimos distinguir o elemento expressivo do seu conteúdo, nem o operar o oposto. Um desdobramento que também é dobramento.
O abismo de Catherine nos alcança de maneira trágica. Seu jogo moral com Jules e Jim é um tormento maravilhoso. Seu jogo amoroso um constante flerte com a morte. Ao amor desse triângulo não cabem epítetos. Como poderiam caber aos seus amantes? O grande paradoxo é que Jules, Jim e Catherine encarnam suas não-identidades. E não podem deixar de afirmar o significante que são. Como o conteúdo não pode ser subtraído da expressão. A morte surge como a única saída. Daí a grande tragédia inscrita em toda codificação...

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