- É hora de partir.
(.)
- É HORA DE PARTIR.
Sem grandes repostas, o homem induz o vôo do canário. Canário que, pelas mãos do homem, sai da gaiola, ganha o mundo. Vai ao chão.
O homem é Sérgio. Tez caribenha, ares europeus. Não trabalha mais, aluga apartamentos. Sustenta os gostos de uma riqueza culta alugando apartamentos que herdou. O pai foi embora, assim como a mãe e a esposa. Deixaram a ilha às vésperas da revolução. Deixaram Sérgio, descrente e, ao mesmo tempo, apegado. Deixaram Sérgio, resistente ao vôo.
O canário fala por Sérgio, que dita com frieza seus atos, num misto de compaixão e autoritarismo. Sérgio, por sua vez, fala por Tomaz Gutiérrez Alea. Fala porque foi feito falar. Roteiro de compaixão ou de autoritarismo? Auto-compaixão e auto-autoritarismo, uma vez que Alea é autor de Sérgio, protagonista de Memórias do Subdesenvolvimento (Memórias del Subdesarollo, 1968), um retrato da Cuba recém tomada pelo socialismo de Fidel Castro.
Autor, na verdade, não sozinho, pois divide o roteiro com Edmundo Desnoes, escritor do livro homônimo que deu origem ao longa-metragem. Sendo assim, do ponto de vista da história, as Memórias... parecem ser muito mais de Desnoes.
No entanto, foram tomadas pra si por Alea, que as dirigiu num fluxo de referências e citações diretas à sua trajetória, como, por exemplo, na cena em que Sérgio leva a nova namorada, aspirante a atriz, ao Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC). Os amigos figurões a quem promete apresentar a moça, na trama, são seus companheiros de profissão, na vida real. Alea, juntamente com o parceiro Julio García Espinosa e outros tantos realizadores cubanos, fundou este marco da nacionalização do cinema pós-revolução, o ICAIC, em 1959.
Sérgio é Alea em seu percurso natural de locações, fotografias, trilhas e artes por uma Havana nova e, até então, ainda estranha. Seu gestual reproduz uma direção de cena a la Nouvelle Vague: câmera solta, contaminação pela afetividade, documentação à base de olhar subjetivo.
Sérgio –e Alea- têm carinho por Havana. Têm também zelo por Havana. Confundem, na verdade, carinho e zelo. Fetichizam e demonstram pertencer enquanto rechaçam e denunciam o próprio descolamento ideológico. Tornam-se, assim, personagens de um relato que se propõem a contar. Tornam-se suas subjetividades prismas aparentemente –só aparentemente- ficcionais de um documento vivo, real em tempo e espaço.
Memórias... fala da contaminação de uma tentativa de historiografia ancorada em minutos e frames. Ainda não puro enquanto eu que relata, exibe o eu que vive. Eu de repertório crítico, de mais perdas do que ganhos dentro da lógica de equação social implementada pelo fidelismo. Privações da esfera privada para um filme que, na contramão de seus correlatos, insiste em falar do individual em detrimento do coletivo.
Um exemplo: enquanto para Encouraçado Potenkim (1925), de Sergei Eisenstein, a revolução russa, de 1917, é uma multidão afugentada Odessa abaixo, para Memórias... a chegada do socialismo é Sérgio, locatário de apartamentos de tez caribenha e ares europeus, sentado à espera do confisco de seus bens.
Iguais no subdesenvolvimento. O regime legitima e Sérgio teima em aceitar. Não aceita, mas não reluta. Política de confissões. Política de inação. O descolamento torna-se estreito. A falar torna-se baixinho. A tez enrubesce ainda mais e o que há de europeu já não aspira mais confiança.
Fora de suas memórias, Sérgio permanece. Sérgio é um, enquanto unidade e também enquanto igual. Um canário sem vôo. Um canário que morre na ilha.
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