terça-feira, 20 de março de 2007

"Jules e Jim: com carinho, com afeto" por José Juvino Jr.




François Truffaut encontrou nos anos 50 por acaso, passeando pelos sebos parisienses, o romance Jules et Jim, do escritor Henri-Pierre Roché. Logo ficou encantado com a história e com a maneira como Roché a contava. "Desde as primeiras linhas, fiquei apaixonado pela prosa de Henri-Pierre Roché (...) Jules e Jim é um romance de amor e estilo telegráfico, escrito por um poeta que busca esquecer sua cultura e que alinha as palavras e os pensamentos como o faria um camponês lacônico e correto", diria Truffaut¹. Em 1962, o diretor francês lançava o filme homônimo Jules et Jim, depois de passar um tempo se correspondendo com Roché.
Não é preciso ter ciência deste “encontro” fortuito de Truffaut com a literatura de Roché para nos darmos conta de que Jules et Jim é um filme híbrido, de natureza dupla, cambiante entre os códigos da linguagem literária e cinematográfica. Truffaut foi um apaixonado pela literatura e acima dela há apenas o cinema entre as suas paixões. Jules et Jim é a carne dessa paixão, uma “transcriação” genial de um mestre para a obra de estréia de um autor – Roché lançou Jules et Jim aos 76 anos.
O filme tem um narrador em off para dar conta das passagens mais densas do livro – ou para evitar o corte dos textos mais belos, como confessa o diretor. As ações dos personagens, por vezes surrealmente despropositadas, vão sendo dotadas de sentido conforme o narrador pontua a história ou nos diálogos entre os mesmos. Tudo no filme parece girar em torno da palavra e os gestos parecem apenas apontar para uma dimensão verbal originária. Jules, Jim, Catherine, todos falam (são escritos) para confundir e dar vazão ao desregramento das vontades (Henri-Pierre Roché escreveu seu livro de memórias, suas aventuras na Paris do início do século e verteu para o papel as delícias e as agonias de seus amores. Ele dividiu com Marcel Duchamp o amor pela Helen Hessel e depois, refeito da paixão, exorcizou sua memória.).
Jules et Jim é a história de dois amigos, um francês e outro alemão, e suas desventuras na Paris à beira da Primeira Guerra Mundial. Como diz a certa altura, em off, o narrador do filme: “Cada um ensinava ao outro, até tarde da noite, sua língua e sua literatura; mostravam seus poemas e os traduziam em dupla. Tinham também, em comum, uma relativa indiferença pelo dinheiro. Eles conversavam sem pressa, nenhum dos dois jamais encontrou um ouvinte tão atento².” Os dois se conheceram numa festa a fantasia e dali em diante iniciaram uma amizade terna que não conheceria limites e extrapolaria as barreiras das convenções moralistas vigentes. Os dois se apaixonam por Catherine, a bela que parecia encarnar a beleza da estátua que Jules e Jim apreciaram no Adriático, o rosto de uma mulher divina, máscara para um sorriso arrebatador.
Com Catherine em cena, a simbiose entre os dois amigos vai passar a operar em outro contexto. Jules e Jim passam a orbitar Catherine, seus desejos. Ambos amam a mesma mulher/deusa. Para perceber essa hierarquia, basta ver/ler a cena em que os três apostam uma corrida e Catherine trapaceia e vence. Jules casa com Catherine, tem uma filha e Jim é um amigo distante. Depois do hiato/separação provocado(a) pela guerra, Jules, Jim e Catherine se reencontram.
No reencontro Catherine não parece mais feliz e Jules tem medo de perdê-la (se já não a perdeu), chegando a pedir ao amigo que fique com ela, para que ela não os abandone. Começa a trajetória mais próxima dos “Três Loucos”, como se batizam: Catherine, Jules e Jim. O gênio de Truffaut vai desfiando a história, re-conta suas idas e vindas, as tempestades/ações de Catherine, os delírios e as angústias de cada um. Num dia ama Jules, no outro Jim, no outro Albert – um amante sempre à espreita. Cartas, canções, filhos desejados. Tudo ao mesmo tempo agora e no mesmo lugar, entre as mesmas quatro paredes e entre os três corações. Depois de tudo, Catherine põe fim a sua vida e a de Jim, jogando o carro em que estão ponte abaixo. Jules fica só, com sua filha Sabine. Truffaut parece dizer que por mais arrebatado, intelectualizado, anárquico que seja o amor, ele só chega perto da amizade. Jules et Jim não é um filme de amor (Eros), mas um filme de amizade (Philia), com carinho, com afeto.

Notas

1 - http://www.zahar.com.br/cat_detalhe.asp?id=1038 Acessado em 10.12.06

2 - http://www.jdborges.com.br/ensaios/julesjim.htm Acessado em 10.12.06

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