terça-feira, 20 de março de 2007

"A Dupla Vida de Verónique" por Julya Vasconcelos



Uma mesma alma que habita dois corpos diferentes, simultaneamente. Como no Jogo da Amarelinha, por exemplo, quando Tatiana torna-se claramente um duplo perturbador da Maga; Ou um corpo que, por sua vez, ocupa duas almas a um só tempo, como em Avalovara, de Osman Lins, quando uma personagem se diz “nascida e nascida”, com olhos por dentro de olhos, peles por baixo de pele, uma voz que fala por trás da sua.
A idéia do duplo não é nova na ficção.
A Dupla Vida de Verónique é uma história assim. Ou melhor, corrigindo, A Dupla Vida de Verónique é mais a sensação do duplo, que propriamente uma história. É como uma intuição, um pressentimento. Um palpite.
Duas jovens mulheres, a polonesa Veronika e a francesa Veronique (ambas interpretadas pela linda Irene Jacob), compartilham uma espécie de ponte que vai de uma a outra, ao passo que vai das duas a um nível espiritual misterioso. Essa ligação é de origem e sentido completamente desconhecidos. Na realidade, essa não é nem uma questão no filme. A “questão” desse filme é muito mais o exercício poético pelo exercício poético, ponto. Verónique passando o anel embaixo dos olhos, ou se encostando do vidro da janela para driblar o calor, ou pondo a mão na boca enquanto fala. O velho tarado, a morte de Veronika no meio da música, a fotografia onde ambas se encontram pela única vez.
O mistério não se desfaz, e por vezes um outro mistério surge, e mais outro, e mais outro, até que todo o filme não seja mais que uma grande reserva de questionamentos sobre o destino e o imponderável. E daí há pistas, há o amante que escreve livros e maneja bonecos, e manda caixas vazias, fita de tecido. E quando ela o encontra, ele próprio ao invés de dissolver os enigmas se torna também, ele próprio, uma grande pergunta, e diz: eu queria verificar se era possível, psicologicamente.
Na realidade, nada é para ser entendido, porque se se procura compreender um enredo que precisa primeiro se abrir, desenvolver e depois se fechar, haverá um sério engano. O filme de Kieslowski é uma grande subjetivação de qualquer que seja o assunto. Tentemos uma metáfora: é como uma poesia que talvez não faça muito sentido como um corpo homogêneo, eloqüente, mas que cada verso é de uma beleza tão extraordinária, que não há como dizer que seja outra coisa senão poesia.

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