terça-feira, 20 de março de 2007

"Artigo de Luxo" por Ana Maria Maia


“My fair Lady falava de glamour. Falava de estilo, sonho, tinha um figurino impecável. Era romântico. Tudo que hoje em dia já não é mais.” A editora de moda Grace Mirabella abre o making of da versão de aniversário de My Fair Lady (1964) –título no Brasil traduzido para Minha bela dama- com o statement.

Naquela ocasião, a película acabara de ser restaurada e fora lançada em DVD duplo comemorativo dos 40 anos da rodagem. Era 2004. A editora realmente tinha razão em posicionar, quatro décadas depois, o musical estrelado por Audrey Hepburn como, acima de tudo, um ícone fashion, uma referência até hoje reprocessada nos pregões de tendência e comportamento mundo afora.

Isso, sim, vai a reboque de um fluxo nostálgico da moda nos anos 00. Uma moda de fácil percepção matricial, de proposições sobre proposições, camadas sobre camadas. Uma moda que, em meio à tecnologia dos tecidos e a vibração das “novas” cores, se volta ao passado como se fora uma eterna fonte de inspiração. Se volta aos ícones do passado como heróis de um glamour puro, áureo e, por isso, por mais que se tente, irreprodutível.

Audrey Hepburn é o glamour. Mesmo que os 00 a tenham sobreposta por uma infinidade de camadas –e ícones de beleza dos 70, dos 80, dos 90-, ela, ainda assim, permanece incólume como sinônimo desse sentimento de elevação através da beleza que norteia o impulso de consumo. Já foi “Sabrina” (1954), “Cinderela em Paris” (1957), “Bonequinha de Luxo” (1961)... Vestiu e eternizou a ousadia de seu tempo. Hoje, Audrey lembra pretinho básico com colar de pérolas; óculos redondos de aro preto e grande; calça capri com camisa, sapatilha e lençinho no pescoço; piteira e malha de gola rolê.

Em My Fair Lady, num papel de época –até para a época-, foi vestida por Cecil Beaton, que, aliás, entre um take e outro, a fotografava em editoriais logo estampados em revistas americanas e estrangeiras. O figurino não chegou a lançar hits da estação como em outros roteiros contemporâneos à filmagem, mas legitimou a elegância como atributo de enaltecimento da mulher. My Fair Lady é, basicamente, o que Audrey vestiu e como portou cada indumentária. E isso se engana quem lê como hipérbole ou firula argumentativa.

Vide sinopse: “Um culto professor de fonética aposta com um amigo que é capaz de transformar uma simples vendedora de flores numa dama da alta sociedade, num espaço de seis meses”. Passam-se os seis meses e o culto professor de fonética interpretado por Rex Harrison cumpre a tão árdua tarefa. Às custas de incessantes exercícios vocais, leituras, trava-línguas, correções e... Roupas, muitas roupas. Artigos de luxo para garantir a entrada da cinderela de Convent Garden na alta roda Londrina.

Dai em diante é só lucro. Chapéu enorme e deslumbrante para tarde no jockey clube, gala impecável para o baile do embaixador grego, taieur bem talhado só para pose oblíqua, numa chaise, lógico. Banho de loja, não, banho de maison. E Givenchy, de preferência.

O dedo em riste que o diretor George Cukor, nos extras do DVD, diz colocar sobre a artificialidade dos valores aristocráticos da sociedade inglesa volta para si, para Hollywook, para o tão inflamado “way of life” dos norte-americanos do pós-guerra. Volta porque, na queda de braço “não pertence porque não é” contra “pode pertencer através do que compra”, vence em artificialidade a segunda opção.

Talvez o diretor quisesse mesmo ter feito uma crítica, talvez acreditasse, nos idos 60, que o “final feliz” da florista com o professor de fonética (criatura e criador) indicasse um “self-made man/woman” reconhecido(a) pelo que realmente é, por traz da postura treinada e das roupas compradas. Conclusão 40 anos depois: George Cukor não acreditava -ou melhor, não fazia acreditar- sozinho. Estavam com ele diretores, roteiristas, estúdios de uma fábrica de sonhos chamada Hollywood.

My fair lady foi um lucrativo produto dessa fábrica. Rendeu bilheterias astronômicas, arrebatou oito dos 10 Oscar a que concorreu, além de um Globo de Ouro e um Bafta, prêmio da indústria cinematográfica britânica. Confirmou mais uma vez a glória e a aceitação do gênero musical, com suas falas cantaroladas, movimentos ensaiados, rodopios que hoje chegam até a soar datados e enfadonhos.
“Era romântico. Tudo o que hoje já não é mais”, ressoa a fala de Grace Mirabella, aqui consentida, mas corrigida. Era romântico, em 1964, porque enaltecia valores morais enquanto enchia os olhos de beleza cênica. Porque reforçava a crença no glamour da ficção enquanto tornava cada espectador personagem de sonhos íntimos.

Esse traquejo o tempo pra muita gente levou de My fair lady. Ficou o romantismo da películo poída, das cores recuperadas, do vestígio de algo que, sim, “já não é mais” enquanto hoje, mas eternizou-se como uma cristalização de referências. Aos contemporâneos, My fair lady é vintage, retro. Está catalogado com distinção nas nostálgicas e revirativas camadas do olhar fashion.

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