terça-feira, 20 de março de 2007

"A trilogia do silêncio" por Paulo Carvalho



Devo aqui nesse breve ensaio analisar a Trilogia do Silêncio – também conhecida como a Trilogia da Fé, obra do diretor sueco Ingmar Bergman. A trilogia é constituída pelos filmes Através de um espelho (Sasom I en spegel) de 1961, Luz de inverno (Nattvardsgästerna) de 1962 e O silêncio (Tystnaden) de 1963. Ainda que não consensual, o agrupamento dessas três obras como constituintes de uma trilogia pode nos ajudar a apontar interseções entre elas, assim como lançar algumas questões sobre a obra de Bergman.

Bergman e o cinema
It´s like a film – little scraps of a filme, which I set running and which I can reconstruct to the last detail – except their smell.
Bergman on Bergman (1968), sobre a infância.

Nascido em Uppsala, capital sueca, Bergman foi profundamente marcado por sua infância. Seu pai era um pastor luterano bastante rígido o que lhe rendeu uma educação dura, marcada pela culpa e pelo castigo. O diretor sueco levou dessa infância muitas cicatrizes, mas também os valores que serviriam de base para os filmes e peças teatrais que iria realizar a seguir. Fé, morte, remorso, humilhação são temas recorrentes na sua narrativa. Em sua autobiografia, Lanterna mágica, Bergman descreve os castigos que recebia quando criança, constrangimentos e humilhações como desfilar vestido de menina ou ser trancafiado em um armário.
Bergman licenciou-se em literatura e história da arte pela Universidade de Estocolmo com uma tese sobre aquele que considera sua maior influência nas artes, August Strindberg, pintor, escritor e dramaturgo sueco. Para Bergman, Strindberg expressara coisas que havia experianciado, mas que ele não conseguira ante então por em discurso. Herdará de Strindberg a temática existencialista, a busca pelo indizível e a ligação com o teatro. Aliás, ao lado do cinema, sua paixão pelo teatro o acompanhará por toda vida. Chegou a afirmar certa vez que o teatro seria sua esposa, enquanto o cinema sua amante. Durante o período que estudava literatura e artes na Universidade de Estocolmo se envolveu com a produção, direção e atuação em peças teatrais. Também escreveu inúmeras peças e histórias curtas que se perderam sem produção ou publicação. Ao fim da licenciatura tornou-se diretor assistente do Teatro Real (Ópera de Estocolmo). Mais tarde viria a ser diretor do Teato Municipal de Goteborg e do Teatro de Malmoe.
Em 1941, Bergman ingressa na indústria do cinema como escritor de roteiros. Nesse período assinou o script do filme Hets (Torment, 1944), dirigido por Alf Sjöberg. O trabalho para Sjöberg rende-lhe prestígio e no ano seguinte estreou como diretor do filme Crise (Kris). Os primeiros filmes de Bergman não recebem grande destaque. Só em 1949 lança o filme Prisão(Fängelse), sua primeira grande obra como diretor. Nele Bergman trabalha os temas que marcarão seu estilo pessoal. Vida e morte, deus e o homem, questões filosóficas que aparecerão nos seus futuros filmes.
Bergman defende que toda obra deve ter uma “mensagem” e que antes de realizar um filme o diretor deve deixá-la emergir, ainda que não consiga decifrá-la. Segundo o diretor sueco a mensagem de muitos filmes seus permanece desconhecida inclusive para si mesmo e a certeza que ela permanece viva é dada pelo incômodo que a obra continua a provocar.
Já que seus filmes não trouxeram grandes transformações para a linguagem do cinema, Bergman não costuma ser considerado pela crítica um diretor de vanguarda. O fato é que suas obras estão absolutamente centradas na força dos diálogos e na capacidade expressiva de seus atores. Sua experiência no teatro foi determinante nesse sentido. Na direção de elenco costumou usar um método bastante livre e nunca contrariar a perspectiva que o ator achava mais pertinente. Nem sempre o roteiro trazia diálogos fechados, o improviso e a intuição do elenco conduziam a obra por caminhos mais intensos que o roteirizado.
Produções dispendiosas, cenários suntuosos, atores com cachês demasiado caros, nada disso remete ao cinema de Bergman que sempre realizou seus filmes com um baixíssimo orçamento. Seus atores diletos compunham uma espécie de companhia que se alterou muito pouco durante sua trajetória de cineasta.

“Sim, pobre papai, forçado a viver na realidade”
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Quando ainda planejava rodar o filme Através de um espelho, primeiro filme da Trilogia do Silêncio, Bergman escreveu em seu caderno de notas: “esse filme terá uma história que se move verticalmente e não horizontalmente”. A enigmática anotação foi mais tarde traduzida pelo diretor sueco como a intenção de filmar uma história que explorasse uma inédita ”dimensão de profundidade”. Da trilogia essa é a película mais teatral.
O filme rodado em 1961 é todo tomado pela atmosfera fria e pouco luminosa do verão báltico. Tal como aprendera com seu mestre, o diretor Victor Sjostrom (protagonista em Morangos Silvestres), Bergman usa a natureza como elemento de expressão primeiro a envolver todos os demais elementos da composição dramática. A ilha báltica em seu verão chuvoso, capitada pela fotografia impecável de Sven Nykvist, remete ao isolamento e ao silêncio, leitmotiv de toda a obra de Bergman. Associação que faz lembrar Marcel Mauss em seu clássico estudo sobre os esquimós. Para o antropólogo francês as estações afetariam profundamente as idéias, as representações, toda a mentalidade social. O verão marcaria muitas culturas pela dispersão - o afastamento dos corpos e das forças criativas - e por uma espécie de solidariedade “lânguida”. O ambiente em que se desenvolve é decisivo para Através de um espelho.
Você é vazio, mas esperto. Alguma vez já usou uma palavra verdadeira? Bergman parece travar uma longa luta contra o silêncio. Sua arma mais poderosa são os diálogos que surgem como a tentativa de diminuir a tensão psicológica da trama ainda que acabem por restituí-la de maneira mais forte. Na película, Karin (Harriet Andersson) encontra-se em uma crise de loucura. Outros três personagens fazem face ao isolamento e impossibilidade de comunicação trazida por sua doença. O pai (Gunnar Björnstrand), o marido (Max von Sydow) e o irmão (Lars Passgård) compõem o núcleo prostrado diante da loucura. Ao som de Bach – compositor dileto de Bergman – a trama ganha profundidade, cada personagem questiona sua própria concepção da verdade, do amor e de deus. O filme culmina com o diálogo catártico entre pai (não sei se o amor é a prova da existência de Deus, ou se é a própria existência de Deus) e filho (meu pai falou comigo).
A película faz emergir uma questão fundamental para a compreensão do cinema de Bergman. A verdade é que o diretor sueco por vezes já foi criticado por uma espécie de covardia artística, ainda que essa característica dote seus filmes de uma obscuridade classificada por Artur Lundkvist, da revista Chaplin, como desafiadora e sedutora. Filmes como Através de um espelho são dotados de uma ambigüidade nascida de um recuo “mais ou menos racionalista”. Esse recuo é empreendido nas vezes que Bergman leva o mais longe possível sua fé na inspiração. Na Bonniers Litterära Magasin, Pär Rådström aponta que tal contradição nasce do fato de Bergman ter vergonha de sua condição de artista – na verdade um receio de se exibir demasiado -, nesse processo sua genialidade encontra o medo.

“Deus está silencioso”

A Suécia moderna, secularizada e ávida por sucesso não entende a obsessão de Bergman pela temática religiosa. Mesmo com amplo reconhecimento fora de seu país – é ganhador de dois Oscars seguidos de melhor filme estrangeiro com A fonte da donzela em 1960 e Através de um espelho em 1961 – continua sendo tratado com reservas em seu país. Com Luz de Inverno(1962) Bergman confronta diretamente a crítica. Um filme “feio”, em que as duas maiores estrelas da Suécia até então, Gunnar Björnstrand e Ingrid Thulin, aparecem repugnantes no papel de um padre hesitante e de uma amante dependente.
Por que devemos continuar vivendo? A verdade é que Bergman utiliza-se da temática religiosa para explorar sua dimensão humana. Motivo pelo qual seu trabalho é costumeiramente associado a questões ontológicas, existenciais e psicologizantes. Não é Deus que está no centro do discurso, também não é a fé ou a religiosidade, mas o homem do século XX, cindido, descrédulo e desacreditado. Quando um de seus personagens procura por Deus, na verdade, procura por si mesmo – o cada vez mais in-signi-ficante si mesmo, procuram também o outro e o amor subjacente ao reconhecimento do outro. O que nos aproxima da filosofia da alteridade do pensador lituano Emmanuel Lévinas. “A ética é agora, insistimos, uma infinita relação de aproximação à transcendência do outro como outro, isto é, respeitado no absoluto da sua diferença em razão de nele, no seu rosto, se revelar Deus, o Infinito ou a transcendência”. O sofrimento do homem, como traduziu o sacristão em Luz de Inverno, nasce quando não é compreendido e não compreende o outro, formularia Lévinas: quando não enxerga a santidade no rosto do outro. Interassente observar que uma marca estilística de Bergman é rosto capitado em close.

O silêncio

Que lugar tão inóspito é esse em que ele sente como se estivesse sendo deixado para morrer?
(Maria Rita Khel)

O silêncio é o filme que fecha a trilogia. Seu roteiro é baseado em uma peça de rádio chamada The City e também em um sonho que Bergman tivera em 1962 enquanto atravessa uma doença. No sonho, Bergman encontra-se em uma cidade completamente estrangeira “onde qualquer coisa pode acontecer, e verdadeiramente, tudo acontece”. Na película essa cidade é Timoka, nome tirado de um livro de poesia que a esposa estoniana de Bergman lia enquanto o roteiro era desenhado.
O verão invade o quarto de hotel em que duas irmãs (Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom) e uma criança estão hospedas. O país é estrangeiro, como o do sonho do diretor, leste europeu provavelmente. No espaço reduzido do quarto os três personagens se dispersam. A criança, um menino por volta dos dez anos, seduzido e desprezado pela mãe vive a situação definida por Gregory Bateson como a dupla cilada (doble binding). As irmãs molestam-se uma a outra com silêncio e indiferença. Em meio ao afastamento total, a música de Bach - tocada em um rádio - incita o único momento de aproximação do núcleo em toda a película.
Nesse filme apenas o que é estranho comunica. Os anões, o velho mordomo, o amante estrangeiro, as palavras estrangeiras. À criança, a tia ensina, najgo e kasi: rosto e mão em língua estrangeira.

A Trilogia do Silêncio é uma das grandes obras do cinema e conjunto fundamental para entender o cinema de Ingmar Bergman. Se por um lado não traz grandes inovações estéticas, por outro apresenta de maneira delicada e ao mesmo tempo arrebatadora temas que beiram o indizível. Assistir a um desse filmes é compreender que o silêncio é também um signo. Talvez o mais devastador e violento de todos os signos.

Referências

KEHL, Maria Rita. “Masculino e feminino: o olhar da sedução” in NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

LÈVINAS, Emmanuel. Deus, a Morte e o Tempo. Coimbra: Almedina, 2003.

Consulta aos sites:

http://www.ingmarbergman.se/

http://www.bergmanorama.com/

http://en.wikipedia.org/wiki/Ingmar_Bergman

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