Você não viu nada em Hiroshima.
Nada.
Eu vi tudo.
Tudo.
No decorrer da história do cinema, não foram poucos os flertes entre a linguagem audiovisual e a literatura. E também não foram poucos os filmes que na tentativa de enlaçar esses dois campos, terminaram por suplantar um ou outro. Quando não ambos. São os filmes que possuem um texto articulado, proveniente de uma base literária, mas sem nenhum apuro imagético, ou os que até possuem um apuro imagético, mas não conseguem rearranjar o conteúdo lingüístico na tela. Afinal elaborar um roteiro não é o mesmo que escrever um livro por mais abrangentes que sejam as possibilidades. É muito fácil qualquer frase bonita soar patética. Essas produções perdem qualquer tipo de consistência, a partir do momento que os seus próprios recursos se tornam incompatíveis dentro de uma única obra, a partir do momento que o discurso e a estética se fragmentam em pesos desiguais. São diálogos que não cabem nos personagens, narradores poéticos em olhares precipitados ou expressões faciais que não dizem nada.
Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, porém, segue por um caminho bem distinto. A película impressiona pela maneira como o vigor literário não enevoa, em nenhum momento, o poder imagético do filme. E como a música aparece como um terceiro viés, intensificado e retificando a proposta enquanto narrativa. Esses elementos estão sempre se renovando na forma de se relacionar, sempre se reiterando, se complementando. Quase como num jogo de encaixe. Se por um lado, a palavra assume um papel fundamental no jogo de sensação e impressão dos personagens, sendo transmitida através de um tom peculiar e sonoro onde cada sílaba é submetida a um ritmo próprio; do outro, surge uma preocupação estética profunda em enquadramentos e composições de cena expandindo sensorialmente, através de objetos, tempo de imagem e movimentos de câmera, todas as questões filosófico-existenciais já ditas e reditas. Funcionando a música como um recurso sensibilizador, tênue e permanente. Tudo se auto-completa. Tudo se torna lírico. Tudo coexiste harmoniosamente, por mais angustiante que seja a temática. Hiroshima não é um grande filme apenas pela literatura que contém ou pelo cinema que representa, mas pela difícil missão de criar um laço que os une quase que organicamente. E nesse campo, foram poucas as tentativas que deram certo.
Pode-se zombar, mas ou que mais pode fazer um turista senão chorar?
Mas a película de Alain Resnais não é um grande filme apenas por isso. Começar a assistir ‘Hiroshima, Mon Amour’ é certeza de acompanhar densamente o filme até o fim, de se envolver no lirismo literário-imagético que permeia toda película. Não existem desistências ou interrupções. O começo é intenso e ele lhe consome. São 15 minutos de total suspensão. Dois corpos nus, enlaçados. Um feito na medida do outro. Trata-se de uma atriz francesa e um arquiteto japonês. Ela fala de tudo que viu sobre Hiroshima. Ele diz que ela não viu nada. Nada. Ela reconta a história da cidade pós bomba atômica através dos meios que teve acesso. Jornais, noticiários, filmes, visita ao hospital, quatro vezes ao museu, pedras queimadas, cabeleiras anônimas caídas e ferros retorcidos numa exposição. A história e as reconstituições na falta de outra coisa. O japonês, porém, sempre intervém; replica que ela não viu nada. Nada. E não viu mesmo. Nenhum de nós viu. Há um formato documental marcante no filme, herança do próprio Resnais que antes de Hiroshima realizou alguns documentários (, assim como há uma marca poética e repetitiva provinda do roteiro da escritora Marguerite Duras, que dá um toque extremamente literário às palavras ditas pela linda voz de Emmanuelle Riva. Quase como recitasse. Terminado esse primeiro momento do filme, se revelam as faces dos personagens. Aquele que era para ser apenas mais um encontro casual numa noite qualquer se torna, segundo após segundo, num relacionamento profundo, num envolvimento profundo. A atriz vai voltar para França. O japonês quer que ela fique. O tempo entre eles não pode ser nem prolongado, nem abdicado. Resta ao casal aproveitarem suas últimas horas juntos, um na medida do corpo do outro, sofrendo por não poderem mudar seus próprios destinos. Perambulam pela cidade, conversam; ela revela detalhes trágicos do seu passado. Detalhes de quando era jovem, de quando estava durante a Segunda Grande Guerra em Nevers, na França, apaixonada por um soldado alemão. Quase uma sessão de psicanálise. Agora ela já havia esquecido esse amor antigo e acreditava que logo, logo esqueceria o novo. Mas ela não pôde antes e não pode novamente. A atriz está mentindo, tentando esconder a passionalidade que a domina. Que a confunde e enlouquece se for preciso. Que a faz gritar, que a faz arranhar suas mãos contra a parede. Assim como por mais amarga que seja a lembrança da bomba atômica de Hiroshima, o japonês não poderá esquecê-la. Nenhum japonês poderá, ainda que tornem as ruínas de sua cidade em pontos turísticos. A francesa diz “assim como existe no amor, a ilusão de poder nunca esquecer, eu tive diante de Hiroshima. A ilusão de jamais esquecer como no amor. Como você, eu conheço o esquecimento”. O japonês a responde “Você não conhece o esquecimento”. Ele sabe que ela não conhece, porque ele próprio não também não conhece. Nenhum de nós, para ser bem sincero. A memória persiste.
Porque negar a evidente necessidade da memória?
Nada.
Eu vi tudo.
Tudo.
No decorrer da história do cinema, não foram poucos os flertes entre a linguagem audiovisual e a literatura. E também não foram poucos os filmes que na tentativa de enlaçar esses dois campos, terminaram por suplantar um ou outro. Quando não ambos. São os filmes que possuem um texto articulado, proveniente de uma base literária, mas sem nenhum apuro imagético, ou os que até possuem um apuro imagético, mas não conseguem rearranjar o conteúdo lingüístico na tela. Afinal elaborar um roteiro não é o mesmo que escrever um livro por mais abrangentes que sejam as possibilidades. É muito fácil qualquer frase bonita soar patética. Essas produções perdem qualquer tipo de consistência, a partir do momento que os seus próprios recursos se tornam incompatíveis dentro de uma única obra, a partir do momento que o discurso e a estética se fragmentam em pesos desiguais. São diálogos que não cabem nos personagens, narradores poéticos em olhares precipitados ou expressões faciais que não dizem nada.
Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, porém, segue por um caminho bem distinto. A película impressiona pela maneira como o vigor literário não enevoa, em nenhum momento, o poder imagético do filme. E como a música aparece como um terceiro viés, intensificado e retificando a proposta enquanto narrativa. Esses elementos estão sempre se renovando na forma de se relacionar, sempre se reiterando, se complementando. Quase como num jogo de encaixe. Se por um lado, a palavra assume um papel fundamental no jogo de sensação e impressão dos personagens, sendo transmitida através de um tom peculiar e sonoro onde cada sílaba é submetida a um ritmo próprio; do outro, surge uma preocupação estética profunda em enquadramentos e composições de cena expandindo sensorialmente, através de objetos, tempo de imagem e movimentos de câmera, todas as questões filosófico-existenciais já ditas e reditas. Funcionando a música como um recurso sensibilizador, tênue e permanente. Tudo se auto-completa. Tudo se torna lírico. Tudo coexiste harmoniosamente, por mais angustiante que seja a temática. Hiroshima não é um grande filme apenas pela literatura que contém ou pelo cinema que representa, mas pela difícil missão de criar um laço que os une quase que organicamente. E nesse campo, foram poucas as tentativas que deram certo.
Pode-se zombar, mas ou que mais pode fazer um turista senão chorar?
Mas a película de Alain Resnais não é um grande filme apenas por isso. Começar a assistir ‘Hiroshima, Mon Amour’ é certeza de acompanhar densamente o filme até o fim, de se envolver no lirismo literário-imagético que permeia toda película. Não existem desistências ou interrupções. O começo é intenso e ele lhe consome. São 15 minutos de total suspensão. Dois corpos nus, enlaçados. Um feito na medida do outro. Trata-se de uma atriz francesa e um arquiteto japonês. Ela fala de tudo que viu sobre Hiroshima. Ele diz que ela não viu nada. Nada. Ela reconta a história da cidade pós bomba atômica através dos meios que teve acesso. Jornais, noticiários, filmes, visita ao hospital, quatro vezes ao museu, pedras queimadas, cabeleiras anônimas caídas e ferros retorcidos numa exposição. A história e as reconstituições na falta de outra coisa. O japonês, porém, sempre intervém; replica que ela não viu nada. Nada. E não viu mesmo. Nenhum de nós viu. Há um formato documental marcante no filme, herança do próprio Resnais que antes de Hiroshima realizou alguns documentários (, assim como há uma marca poética e repetitiva provinda do roteiro da escritora Marguerite Duras, que dá um toque extremamente literário às palavras ditas pela linda voz de Emmanuelle Riva. Quase como recitasse. Terminado esse primeiro momento do filme, se revelam as faces dos personagens. Aquele que era para ser apenas mais um encontro casual numa noite qualquer se torna, segundo após segundo, num relacionamento profundo, num envolvimento profundo. A atriz vai voltar para França. O japonês quer que ela fique. O tempo entre eles não pode ser nem prolongado, nem abdicado. Resta ao casal aproveitarem suas últimas horas juntos, um na medida do corpo do outro, sofrendo por não poderem mudar seus próprios destinos. Perambulam pela cidade, conversam; ela revela detalhes trágicos do seu passado. Detalhes de quando era jovem, de quando estava durante a Segunda Grande Guerra em Nevers, na França, apaixonada por um soldado alemão. Quase uma sessão de psicanálise. Agora ela já havia esquecido esse amor antigo e acreditava que logo, logo esqueceria o novo. Mas ela não pôde antes e não pode novamente. A atriz está mentindo, tentando esconder a passionalidade que a domina. Que a confunde e enlouquece se for preciso. Que a faz gritar, que a faz arranhar suas mãos contra a parede. Assim como por mais amarga que seja a lembrança da bomba atômica de Hiroshima, o japonês não poderá esquecê-la. Nenhum japonês poderá, ainda que tornem as ruínas de sua cidade em pontos turísticos. A francesa diz “assim como existe no amor, a ilusão de poder nunca esquecer, eu tive diante de Hiroshima. A ilusão de jamais esquecer como no amor. Como você, eu conheço o esquecimento”. O japonês a responde “Você não conhece o esquecimento”. Ele sabe que ela não conhece, porque ele próprio não também não conhece. Nenhum de nós, para ser bem sincero. A memória persiste.
Porque negar a evidente necessidade da memória?
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