sábado, 24 de março de 2007

"Tomás Gutierrez Alea" por Luís Henrique Leal





I

Em Agosto de 1975, o jornalista colombiano Gabriel Garcia Márquez escrevia para a Revista Alternativa a reportagem “Cuba de cabo a rabo”, publicada em três partes. Era um momento fundamental, em que se iniciaria um processo de institucionalização da Revolução Cubana. Não parece casual que neste processo de institucionalização existisse um interesse específico em relação ao problema da liberdade de criação e expressão.

“Poucas coisas originaram tantas controvérsias azedas e tantas alegrias aos inimigos quanto o enigma idiota de saber se a pintura do socialismo deve ser realista ou abstrata, ou se a música deve ser melódica ou concreta. No projeto de Constituição, os cubanos resolveram o problema com uma penada: todas as formas de criação artística são livres.”

A discussão citada por García Márquez é reveladora.

Fica entendida uma peleja entre diferentes concepções das possibilidades de constituição de significado artístico. Uma das compreensões – que se parece haver feito minoritária, não havendo conseguido transformar-se em texto constitucional -, devidamente classificada como estúpida pelo autor, colocava-se como uma possibilidade temerária do estabelecimento de um referencial onipresente, modelo para toda e qualquer criação, e da submissão da arte a interesses de outra ordem.A determinação de um modelo de produção artística seria claramente uma tentativa de estabelecer, através da imposição, modelos de reverência. Sentenciar que as produções artísticas devem organizar suas disposições morfológicas e temáticas de tal ou qual jeito equivale ao estabelecimento de uma tipificação idealizada; é um desdobramento do raciocínio moderno, capaz de considerar a existência de um único significado explicativo verdadeiro.

Ao passo em que o desenvolvimento da linha de raciocínio pode gerar lógicas perversas de limitação das possibilidades de criação artísticas, se faz conveniente dimensionar uma estrutura de racionalização que compreenda esta lógica.

Obras de arte não existem fora do tempo, isto é, se vinculam a razões estruturais vivenciadas num determinado tempo – a partir de perspectivas objetivas ou subjetivas – e a tentativa de enquadrar atende a uma assimilação .

Uma compreensão generalizada entre os cubanos era, pois, que a arte poderia – e deveria - ser um fator de alteração da ordem social. Desde a criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) – tão somente 83 depois do triunfo da Revolução -, por exemplo, se estabelecera uma consciência das vinculações do cinema com a formação de um imaginário coletivo.

II

Os livros de história não reservam muitas páginas ao ano de 1975. Laconicamente, compendiam-se a relacionar as independências de Angola e Moçambique, a proclamação da República na Etiópia e tergiversar sobre uns quantos dados pouco significativos sobre a Guerra Fria. Uma observação com maiores preocupações de aprofundamento, no entanto, não estabelece objetividade a ponto de impossibilitar uma visão ampla dos permeios.

1975 é, assim, ano do fim da Guerra do Vietnã – precedente histórico, fundamental para a compreensão do arranjo geopolítico da Guerra Fria. Mas é, igualmente, incorrer em erro acreditar que a existência de um fato ao qual se atribui maior importância historiográfica encerra a discussão acerca dos significados dos acontecimentos no tempo.1975 resulta de um aglomerado de arranjos e ordenações do mundo. Logo, em si, nada representa. O parágrafo anterior vislumbra a importância de encerrar um momento dramático da história, imperativo da brutalidade. Tal encerramento, no entanto, organiza-se a partir de uma lógica pregressa.
É um ano que desdobra conseqüências resultantes de 1789, 1848 ou 1968. Desse modo, parece interessante considerar o ano em questão – ou qualquer outro - como uma acumulação de significados, de memória; uma profusão de sentidos.III

Tomás Gutierrez Alea não filmava em 1975; trabalhava na pré-produção de seu filme “La sexta parte del mundo” – realizado em parceria com Júlio García Espinoza. Mas “Titón”, como amorosamente era chamado Alea, já acumulava uma filmografia fascinante.

Já havia realizado o que hoje se considera sua obra-prima, o longa-metragem “Memórias do subdesenvolvimento” (1968) – adaptação do romance homônimo de Edmundo Desnoes.

1968, o ano que não acabou. Che Guevara morto. Martin Luther King por morrer. Maio, jovens franceses acreditam na possibilidade de transformar o mundo. Agosto, tanques soviéticos avançam sobre Praga. Outubro, mais de quinhentos estudantes mexicanos chacinados em Tlatelolco. Dezembro, os militares brasileiros se saem com o AI-5.1968, o cinema projeta um mundo que poderia ser. Terra em Transe, A chinesa e Antes da revolução são incentivadores dos protestos de Maio, na França. O Eldorado glauberiano suplanta Voltaire – e o filme é proibido. Costa-Gavras, também; Z, por analogia, ridiculariza nossos militares. Pasolini desconstrói a burguesia em Teorema. “Muitos intelectuais proclamavam solenemente sua decisão de suicidarem-se como classe”.

Fato é que poucos o fizeram verdadeiramente, materializando a intenção.

IV

“Para que o povo esteja presente nas telas não basta que ele exista, é necessário que alguém faça os filmes. As imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas como a sua expressão, e sim como a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre cineastas e o povo. Esta relação não atua apenas na temática, mas também na linguagem.”A primeira seqüência de Memórias do Subdesenvolvimento (1968) nos apresenta uma festa popular que toma as ruas. Há uma multidão dançando uma música quente e forte ritmicamente. Todos parecem envoltos numa atmosfera caótica e liberada. Em meio à multidão, escutasse um tiro mas este acontecimento pouco ou nada altera o clima da rua. O povo está em festa.
As imagens parecem haver sido captadas documentalmente, assim como muitas outras no filme. Memórias do Subdesenvolvimento é um filme que consegue captar a euforia espontânea do povo cubano, que revela um momento completamente novo.

Mas o uso da linguagem documental permite também outras possibilidades narrativas. O filme é feito com leveza, e se vê completamente à vontade na sua construção narrativa.

No filme de Tomás Gutierrez Alea, em diversos momentos, a realidade invade a ficção. A narrativa se faz com o uso de muitos materiais captados de forma documental, mas não é este o maior aspecto documental de Memórias do Subdesenvolvimento. Impressiona a construção narrativa cheia de digressões do personagem Sergio – focalizados a partir do exterior e do interior de si mesmo.

O filme estabelece uma apreciação multilateral dos seus acontecimentos. Esse parece ser um trunfo de Memórias do Subdesenvolvimento

Sérgio é um observador distante da realidade. Expressivamente impecável, é um experiência cinematográfica importantíssima. A câmera dinâmica acompanha os sentimentos e raciocínios de Sergio, e mais que isso estabelece uma grande visão panorâmica da realidade – na perspectiva de Sergio e num plano mais objetivo.À cena inicial, das pessoas numa comemoração festiva desenfreada, segue-se a do embarque das pessoas que deixam o país com destino aos Estados Unidos: o êxodo da burguesia nos anos iniciais da Revolução – contraposto à euforia popular. Todos se vão, Sergio resolveu ficar.

Sergio permanece sem saber, ao certo, o que será o porvir e qual sua motivação mais premente. Poder-se-ia dizer que está, inclusive, um tanto aliviado por haver-se livrado da esposa e dos pais.O personagem é notadamente marcado por uma consciência constante do processo que vivencia, assim vai construindo concepções sobre as coisas com que se relaciona.

As digressões de Sergio demarcam um forte sentimento de fascínio e desprezo, que se vai desenvolvendo conforme a realidade ganha novos contornos.

De pronto, em uma de suas observações da cidade, Sergio se põe a olhar os símbolos da Revolução recém inaugurada. Um de seus comentários se refere a uma estátua representativa do governo de Fulgêncio Batista, que foi derrubada. Picasso teria ficado encarregado de mandar um novo símbolo, mas não haveria chegado a fazê-lo.

É significativa, neste sentido, a possibilidade de atribuição de significados. A exaltação de um modelo de sociedade se faz da legitimação de processos que garantam a atmosfera de normalidade e legitimidade. A estátua da época de Batista é, assim, um símbolo das representações de um modelo pregresso - com o qual o tempo em que se passa o filme tenta romper.A substituição por um símbolo renovado, e constituído por um artista de vanguarda nas artes plásticas como Picasso, representa um desejo de afirmação de uma outra possibilidade de construção das coisas – a partir, evidentemente, da exaltação de outros referenciais.Quando da apresentação da cena, em Memórias do Subdesenvolvimento, vemos um suporte sem qualquer estátua. Isto é, destruída uma representação do passado, o que há é uma indefinição – demarcada, simbolicamente, pela ausência da estátua.

Sergio tem uma atitude passiva diante da realidade, é mero observador distante das coisas. Tudo vê de cima e à distância – conforme nos revela metaforicamente Titón ao relacioná-lo a uma luneta. Dotado de senso crítico, é capaz de julgar a realidade e compreendê-la em muitos de seus aspectos; mas incapaz de integrar-se ao processo que se desenvolve nas ruas.

Seu juízo nem sempre é lúcido, Sergio é, também, a representação de um auto-exilado que se nega ao rompimento com as construções de significado da sua sociedade burguesa. Sergio é um burguês dilacerado.Ao mesmo tempo em que percebe, com certo fascínio, a complexidade do novo momento, Sergio busca, por vezes, resistir às novas lógicas e desprezar o subdesenvolvimento que vê como inerente e onipresente na ilha.

Sergio está à margem de toda essa perspectiva de mudança. Não está integrado.

VTomás Gutierrez Alea é autor de um livro intitulado “Dialética do espectador”. A grande questão colocada pelo autor é a da apreciação multilateral dos fatos. A realidade se apresenta através de várias perspectivas – em Memórias do Subdesenvolvimento fica evidente a contraposição entre a realidade dos olhos de Sergio, realidade introspectiva projetada pelo personagem, e um olhar mais objetivo e impessoal da realidade.

Para Titón a verdade não está em nenhum dos pólos de oscilação. A realidade verdadeira surge da capacidade de síntese, do confronto entre as duas perspectivas e dos protagonistas da história. Os sujeitos elaboram conceitos de emancipação do pensamento, a partir da capacidade de dialogar com a multiplicidade de compreensões da realidade.Mas a constituição de universo de Titón não chega a ampliar as possibilidades de compreensão a ponto de inviabilizar uma hierarquização da realidade. O diretor parece basear-se na ampliação temática, mas estrategicamente estabelece um foco para os questionamentos.

VI

“Um país sem cinema documental é como uma família sem álbum de fotografias”.

A compreensão e Tomás Gutierrez Alea e de boa parte da geração de cineastas cubano é, desde o princípio da revolução, de que a arte cinematográfica poderia – e deveria – ser um fator de progresso. Neste sentido, a compreensão é de que o audiovisual exerce uma influência referencial no imaginário coletivo, e que seu desenvolvimento é desdobramento de uma busca de disputa no campo simbólico.Se memória coloca questões fundamentais no que concerne à identificação dos sujeitos, as representações constituídas e as considerações sobre o passado atribuem vivacidade aos acontecimentos. Várias buscas de representação da realidade exercem uma função social importante no que concerne à criação de uma identidade a partir da seleção de memórias, mas para isso é preciso que o público se reconheça nesse cinema.

É uma das preocupações de Titón fazer do espetáculo[1] cinematográfico um elemento de ação e mobilização

VII

Guimarães Rosa já disse que amar é reconhecer-se incompleto – e transcender-se.Tal afirmação pode levar-nos aos mais diferente entendimentos e analogias. Inclusive, à compreensão do cinema que Tomás Gutierrez Alea buscou fazer, e que conseguiu com mais completude em seu “Memórias do Subdesenvolvimento”.

Titón amou a Revolução Cubana – em seu sentido revolucionário. E por considerar que o cinema tinha uma função significativa no processo desencadeado pela revolução, não buscou em nenhum momento tradicionais formas que tendessem a simplificar e esquematizar a realidade em nome da exaltação dos valores revolucionários.A construção da representação da revolução, constituída por Titón, leva a uma imagem multifacetado, que contempla os objetos sob diversos pontos de vista e objetiva provocar julgamentos no espectador. E que segundo grifo do próprio Titón “o primeiro objetivo da crítica dentro da revolução deve ser armar o espectador para a luta pela revolução mesma, fortalecer os princípios nos quais se assenta e acelerar seu desenvolvimento”.

III

Sergio não é uma coisa nem outra. Não é gusano, nem revolucionário – como lhe diz, inclusive, Elena. Esta que é tão boa moça, mas que atrapalha os planos de Sergio de chegar ao que ele acredita ser o desenvolvimento.No museu Hemigway, Sergio tem, entretanto, é tomado por um pensamento significativo. Dentro de sua cabeça, é capaz, através de sua reflexão, de desmontar os esquemas de colonização – exaltados no processo de admiração venerada a Hemingway.O escritor americano, na compreensão de Sergio, nunca se agradou verdadeiramente da ilha. Encontrava apenas refúgio num paraíso exótico, cheio de colonizados miseráveis e disponíveis às suas necessidades. Resultado disso é um jovem negro, que conheceu o escritor ainda criança e foi ensinado a como bem servi-lo adequadamente.Noutra reflexão, Sergio desmonta a lógica dos assassinatos e das justificativas destes no governo de Batista. Implacavelmente, as pessoas e as coisas, evocam a lógica do grupo como forças irrevogáveis e superiores na justificativa das brutalidades. Várias imagens demarcam as novas relações que partem da erradicação de tais repressões e da tentativa de reconstituir novas relações.

VI

O personagem de Sergio desaparece ao final da história. Dilacerado, no período da crise dos mísseis em 62, parece não suportar o desfecho apolíptico que se avizinha – e causa uma obrigatoriedade de ruptura. Por fim, vemos Sergio “É uma dignidade muito cara”.

O processo de desintegração do personagem, no entanto, não vem ao acaso. Desde o princípio, há uma evidente incorrespondência entre Sergio e as pessoas das ruas, entre o sentimento introspectivo de Sergio e o pensamento que se generaliza entre as pessoas.

Sergio não é produtivo. Sempre conviveu com a constatação de que tendo tempo, poderia escrever um romance ou algo do gênero. Solitário, e estabelecendo uma relação kayrosiana com o tempo, se mostra incapaz de produzir – “Agora veremos se tenho realmente algo a dizer”.

Com todas as suas profundas contradições, Sergio pode conduzir-nos a uma tomada de consciência do significado do subdesenvolvimento tanto no plano econômico como no cultural e ideológico. Há um momento em que o espectador, que a princípio compartilhava com o personagem suas observações e critérios da realidade, começa a sentir-se incomodado poruqe o ersonagem com o qual se identificara vai afundando num mar de contradições, dúvidas e incompreensões paralisantes.

Sergio não consegue compreender os valores que norteiam o novo universo. Num sentido profundo, Sergio aparece como um subdesenvolvido na nova sociedade.

VII

Ao fim e a cabo, Memórias do Subdesenvolvimento é um filme fascinante. Uma película capaz de revelar as profundidades e incompletudes do sujeito humano diante dos processos históricos, de desvendar os traumas e contradições da erradicação de um cultura, de apresentar de forma fascinante uma trajetória.






[1] Segundo o sociólogo francês Guy Debord, o espetáculo abre espaço tão somente para a contemplação. Não há ação, esgotam-se as possibilidades de transcendência. A sociedade atinge um estágio de passividade e dependência cotidiana, resumindo-se a reproduzir estruturas – sem qualquer tipo de racionalização. O fio da “normalidade” mantém-se a partir do entretenimento vazio, da larga difusão do espetáculo.

Um comentário:

  1. "espetáculo" degradante é ver alguém digressar sobre um conceito despreocupadamente como se a uma tv zapeasse. burlesco. da mesma monta q falar q "valor" em marx é o mesmo q o valor dado a algo como esse trecho infame. vinha tropeçando; engasguei nele.

    se não foi possível com debord, talvez os comentadores dessem um jeito.

    na dúvida, melhor o silêncio - decência?
    adolfo.

    ps: enfeitar demais é esconder o presente barato.

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