terça-feira, 20 de março de 2007

"Cega Obsessão: solapando a ocularidade" por José Juvino Jr.



Em 1969, nos Estados Unidos, hippies entoavam mantras e faziam sexo na (com) grama, no Festival de Woodstock, Pelé marcava seu milésimo gol e Samuel Beckett ganhava o prêmio Nobel de Literatura. Cega Obsessão (Môjuu, no original em japonês), do diretor Yasuzo Masumura, também foi lançado em 69 (e aqui podemos pensar nas implicações implícitas no trocadilho sexual, bocas devorando genitálias.)
No Japão, jovens artistas se esforçavam na criação de um cinema provocativo, destruidor, que re-significasse e abrisse as veias nipônicas da tradição, fugindo dos eternos clichês sobre samurais. Esses recortes arbitrários dão certa dimensão das preocupações de uma época.
Yasuzo Masumura é um dos principais cineastas da “Nubero Bagu” japonesa, nome como foi batizada a “nova onda” no oriente. Durante sua vida, realizou mais de 50 filmes e foi elogiado por cineastas importantes como Michelangelo Antonioni.
Em Cega Obsessão o diretor conta a história de Michio, um jovem escultor cego, criado pela mãe, que pretende inventar um novo tipo de arte - que escape ao império da visão, uma arte tátil, presa ao toque – seqüestrando uma modelo famosa para lhe servir de musa para suas esculturas. O filme foi baseado num conto de Edogawa Rampo (1894-1965), pai dos romances policiais nipônicos dos anos de 1920 a 1960 e que chegou a ser proibido no Japão.
Além da temática de sexo e morte, masoquismo, desejo e pulsão destruidora (mais evidente e que pode nos saltar à primeira vista), a película também lança luz sobre um problema particularmente interessante para o pensamento ocidental, o Império do Olhar (oculocentrismo).
Pensar uma arte (no caso a escultura) que não encontre seu significado dentro do espectro das reflexões visuais é buscar um entendimento diverso sobre o problema do absolutismo da ocularidade. Michio, o escultor cego de Masumura, procura solapar as bases da tradição do pensamento ocidental onde “a visão tem funcionado não só como metonímia dos sentidos, mas também como metáfora do conhecimento - conhecer é ver - e, por isso mesmo, em última análise como fundamento do próprio ser - esse est percipi, segundo o conhecido dito de Berkeley.”1
Nossas metáforas estão pontuadas por referências à visão. Nos iluminamos, desvelamos, observamos as coisas. A ciência tem sua base no olho. Existe uma “predominância de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento: evidência, perspectiva, enfoque, leitura, ponto-de-vista, teoria, idéia (em grego, eidos, “forma visível”), intuição (do latim, intuere,“olhar atentamente”), inteligência (do latim intus legere, “ler dentro”), visão-de-mundo, etc”2
Para fugir da armadilha oculocentrista, é preciso inventividade e desejo pelo novo, pois “não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária”3 Toda criação exige renúncia e destruição das formas antigas, exige a crise dos valores. Michio, que pode ser visto como um ser patológico pela psicanálise, é um artista (ainda que tenhamos sobre suspeita seus dotes) visionário (com o perdão da metáfora visual). Ele busca criar o novo sem a fratura entre criação e vida, entre corpo e obra. Assim como Antonin Artaud, que foi tratado em singelas terapias de choque por Lacan.
Cega Obsessão é sobre a descoberta de Michio de um mundo possível de significado, inclusive sexual, um mundo em contato com instintos e vontades insuspeitadas em nós, “videntes”. O escultor é um Tirésias que ao invés de predizer o futuro, o cria, o inventa, na pele, no germe mesmo do desejo, não importando teorizações sobre o estatuto moral da nova condição – a relação masoquista, dolorosa -. São as experimentações de Michio e Aki, a modelo famosa, que valem.
Môjuu tem n desdobramentos possíveis de serem lidos e pode mesmo ser entendido como um filme pobre e violento sobre masoquismo, mas vale pelo que realça e sugere de uma possível teoria para uma arte, onde a pela e a memória evocam as formas cruéis da beleza. O registro do sol sobre o corpo, a cicatriz, os sais de prata queimados e em movimento. Môjuu é o encontro da carne com a volúpia, a onda que desaba sobre si mesma. Michio e Aki se reúnem e se esgotam em si mesmos. Cega Obsessão é uma faca só lâmina, sobre todos os olhos.

Notas

1 – Serra, P. Lévinas e a sensibilidade como comunicação originária. http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf%20Acessado%20em%2030/01/07

2 – Simões, R. A imaginação material segundo Gaston Bachelard.http://www.consciencia.org/contemporanea/bachelarddisreinerio.shtml Acessado em 30/01/07

3–Maiakovski,V.http://br.geocities.com/edterranova/maia.htm Acessado em 30/01/07.

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