terça-feira, 20 de março de 2007

"Porque o cinismo é uma coisa boa" por Gustavo Ferreira


Tudo o que acontece em Chicago (Rob Marshall, 2002) é o desenrolar de seus dez primeiros minutos. Começa com Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones) cantando Jazz em um clube noturno sem a usual companhia de sua irmã, Veronica (Niki Wray), que, segundo Velma, “não está em si” (e na verdade foi assassinada por Velma). A seguir, conhecemos Roxie Hart (Renée Zellweger), e logo descobrimos que ela sonha ser cantora e dançarina de jazz, e que Velma é seu ídolo. Mais alguns segundos e a polícia invade o clube e prende Velma. Nesses mesmos segundos descobrimos que Roxie tem um caso com Fred Casely (Dominic West), e que ela mantém esse caso porque Fred disse que conhece o gerente de uma dessas casas de espetáculo e que apresentará Roxie a ele. Mais um pouco de tempo e ele diz que não conhece ninguém. Isso é o bastante para que ela o mate com três tiros. Decorre mais um pouco do filme e conhecemos Amos (John C. Reilly), o marido de Roxie que fará de tudo por ela, mesmo sabendo que foi traído.
O filme acontece em parte por aqui, pelo mundo real, onde as pessoas convivem normalmente e dialogam com palavras normais e sem rimas nem ritmo e onde o sarcasmo é constante, e em parte na imaginação de Roxie, onde tudo se transforma num grande número de um enorme musical e a vida brilha mais intensamente. No mundo real, a convivência diária de Velma e Roxie na prisão com a carcereira corrupta Mama Morton (Queen Latifah) e com o advogado Billy Flynn (Richard Gere, finalmente em uma boa atuação), seus planos de vida, o desenrolar da história. Na imaginação, na mente de Roxie, vários números musicais falseiam a realidade – os fatos se transformam em música e dança. Essa mistura de realidade e imaginação dá ritmo especial ao filme, porque quando a realidade está se cansando, mas antes de se cansar, quando seria difícil manter o musical completamente na realidade, mas antes de incomodar, Roxie começa a imaginar números musicais para explicar a realidade de forma mais dinâmica. Roxie transforma as acusações e os crimes em tango, transforma seu sonho em música. Se não fosse brega, eu diria que Roxie “respira música”. Mas não digo, não digo.
Outra vantagem de Chicago, para agradar àqueles não devotos de filmes musicais “porque os atores simplesmente começam a cantar”, é que as músicas são justificadas – ou pelo trabalho de Velma, ou pelos sonhos de Roxie. Não são apenas as mudanças de humor que compõem as músicas, o que acontece em filmes clássicos como Singin’ in the Rain, nem simplesmente a vontade de cantar, como em West Side Story (onde a mudança de humor também tem participação importantíssima). É o dinheiro e é o sonho. São esses dois fatores, mais realistas (ou realizadores) que o humor, que permitem que os atores cantem à vontade sem que o filme possa ser chamado de “falso” ou que alguém meio estúpido com os lábios e as bochechas meio sujos de sorvete de baunilha possa dizer que “ninguém age assim na realidade”. Essa característica permite que Chicago seja adorado pelos fãs de musicais e apreciado por aqueles que não gostam muito de fantasia porque acham que a realidade é mais legal e arrotam por aí que “Memórias do subdesenvolvimento é um puta filme, saca?”. Pessoas de bom e de mau gosto apreciam o filme, inevitavelmente.
(Aliás, é uma máxima correta – que se não existia, acabo de criar – a que diz ser mais fácil agradar àqueles de mau gosto, por não saberem com exatidão o que é, de fato, bom. Se um filme agradou aos homens de bom gosto, somente com alguma dificuldade não agradará aos de mau gosto [a não ser aquelas pessoas que têm o que chamo de “mau gosto consciente”, que gostam de filmes ruins justamente porque são ruins, porque chocam ou algo assim, como se sofrer fosse um prazer para eles. A esse tipo de pessoas também se pode chamar de “masoquistas” {se o leitor notar, este parágrafo em muito se assemelha a uma equação matemática cheia de parêntesis e colchetes e, para mais esta informação desnecessária, chaves])}.
É verdade que, geralmente, filmes assim tendem a ser idolatrados pelos que têm mau gosto e simplesmente aceitos pelos de bom gosto. Com o tempo, esses filmes se tornam tão cultuados por aqueles que se divertiram vendo “2001: uma Odisséia no Espaço” que simplesmente deixam de ser aceitáveis ao público de bom gosto (as pessoas inteligentes têm uma tendência a não gostar do que os idiotas gostam, é a seleção natural. Eu não continuaria a dizer que gostei de um filme se ele tem como fãs milhares de pessoas que gostaram dele porque é um “soco no estômago” ou porque é “realista e delator das desigualdades”. O tipo de pessoa cujas orelhas de abano servem para abanar o próprio cérebro queimado pelo calor infernal da realidade). O diferencial de Chicago é que com ele a reação é contrária. Os idiotas gostam, os inteligentes amam, e apenas os retardados dizem odiar. Com o tempo, a situação se mantém. Os espertos continuam amando, os idiotas gostando e apenas os retardados rejeitando a majestade do filme. Chicago é estável.
(Ainda dividindo o mundo nessas três categorias – inteligentes (1), idiotas (2) e retardados (3) –, é possível afirmar que (1) inclui também aqueles que se divertiram com Kill Bill, V de Vingança, Os Bons Companheiros, O Senhor das Armas, Sin City, entre outros; (2) inclui os fãs de Glauber Rocha, de cinema latino-americano, Almodóvar, pornô oriental [como “O império dos Sentidos”], cinema francês em geral [Godard em especial] e cinema italiano [exceto os westerns, filmes de pessoas inteligentes]; (3) inclui os fãs de Vin Diesel e das piadas de Vin Diesel, de Steven Seagal e “filmes de luta realista”, incluindo três ninjas contra-atacam. Dessa forma, leitores que se encaixam nos perfis 1 e 2 podem assistir a Chicago sem medo, sairá do filme feliz; aqueles que se encaixarem no perfil 3 não devem ousar assistir ao filme, porque depois não terão o que falar e dirão que faltaram algumas modalidades de Kung Fu indispensáveis no filme).
Outra qualidade de Chicago é o cinismo bem aplicado. Roxie e Velma se odeiam até precisarem uma da outra. Mama Morton faz favores às presidiárias segundo o princípio do “tit for tat”, ou “uma mão lava a outra”. Billy manipula a imprensa com mentiras sobre suas clientes. A imprensa influencia o Júri de forma fatal. Essa é a Chicago dos anos 30: corrupta, cínica, mas elegante, charmosa – exatamente como apresentada no filmes de máfia, por se passar na mesma época. No tempo do filme, Al Capone traficava whisky para todo o país e morava em Chicago. Ninguém toca em seu nome, ninguém fala de máfia. Se a máfia não é assunto do filme, o filme não divaga sobre ela. É assim que deve ser, é assim que é.
Aí reside, aliás, uma vantagem de Chicago sobre outros filmes de crime. Enquanto eles falam de máfia e Capone (o que é um excelente tema, fique claro), Chicago inova ao falar de duas assassinas de maridos. Certamente esse não era o principal acontecimento na cidade, mas torna-se, para efeito dramático. Velma Kelly e Roxie Hart se tornam estrelas dentro da prisão: típico de uma cidade com valores trocados, em que a maldade se sobrepõe à bondade e onde todos torcem pelo vilão. Inclusive nós.
Chicago desdenha da moral, desdenha dos bons costumes, a ponto de, quando Roxie apela para “Jesus, Mary and Joseph”, Mama Morton replicar que ela está falando com as pessoas erradas – que deve falar com Billy Fynn. Os personagens não têm humildade, estão plenamente conscientes de suas capacidades e incapacidades, não ajudam sem retorno. Tudo no filme é comércio, tudo é troca, e isso é fascinante.
Chicago ensina que a vítima geralmente é a culpada – quem não mataria um homem que não pára de estourar bolas de chiclete? – e que o culpado é inocente – “eu não fiz isso, mas se eu tivesse feito, como você poderia dizer que eu estava errada” e “foi um assassinato, mas não um crime”, cantam as presidiárias do corredor das assassinas em “Cell Block Tango”. Mais: Chicago ensina que, se você parece ser inocente à maioria, você é inocente para a lei. Se você não convence o povo, você receberá a pena capital. Ensina que as aparências são muito mais importantes que a realidade. Ensina que fingir bem é melhor que agir bem. Ensina que tudo o que nossas mães ensinam está errado. Que está moralmente certo, mas que ninguém dá a mínima para a moral. Que é preferível fechar os olhos para a realidade se estão nos contando uma mentira mais interessante. Essa mentira deve ser aceita, a verdade deve ser esquecida e todos ficarão felizes com isso – menos aqueles que confiam demais em suas mães e não querem esquecer o que elas ensinaram. A mentira, na verdade, compensa.
Se alguém acha que essa não é a mais importante lição de vida que um filme pode passar, se alguém continua achando que a mentira tem perna curta depois de ver o filme, se mentir não se torna hábito na vida do espectador de Chicago, ai dele. Se alguém não se rende às sedutoras idéias do filme, não se entrega aos fatos que ele expõe de forma tão bela, há de sofrer as injustiças naturais de um mundo que prefere (e está certo em preferir) a beleza à realidade, o heroísmo à banalidade, a conquista à ociosidade, a estética à ética.
Chicago não tenta em nenhum segundo que o espectador ache absurdo o que acontece, não tenta convencer ninguém de nada. Chicago é uma narrativa linear de acontecimentos lineares que nunca têm intenção didática, embora ensine mais do que “Castelo Rá-tim-bum – o filme”. Chicago é amoral. Ninguém sai de Chicago mais virtuoso – Chicago não é Erin Brockovich.
Isso acontece porque os personagens de Chicago não tentam moldar a realidade à sua forma, eles se moldam à realidade. É mais fácil, mais rápido e mais efetivo – principalmente quando a perspectiva para quem não muda é a forca. Enquanto se adaptam a realidade, os personagens perdoam com facilidade os maus tratos que sofreram, esquecem todos os defeitos de quem há pouco era seu inimigo. Chicago é um jogo da vida em que a palavra chave é “oportunidade”. Quem aproveita melhor suas oportunidades termina melhor a vida – e terminar bem não é ter filhos ou passar pela vida sem errar, como no tabuleiro. Terminar melhor pode exigir uma passagem pela prisão (que faz parte de outro jogo, o Banco Imobiliário), desde que se convença o público de que seus erros foram acertos e de que tudo o que se fez foi por bem, foi acertado. Velma e Roxie fazem isso e ficam impunes depois do julgamento – um spoil que não piora em nada o filme, porque isso é simplesmente o que deve acontecer e porque não é exatamente fácil piorar Chicago.
No filme ainda é abordado o tema “imprensa”, cuja volubilidade é parte importante do enredo. Os jornalistas são facilmente manipulados por Flynn, que inventa histórias obviamente falsas sobre suas clientes a fim de defendê-las e acaba convencendo toda a mídia, como se fossem parte de um teatro de bonecos manipulados e dirigidos por Billy. Toda a cidade se mobiliza, se emociona com as histórias das clientes de Billy. A imprensa não pode perder esse filão criado por Billy e praticamente “se deixa” manipular. Histórias emocionantes aumentam as vendas, e Chicago é uma cidade muito comercial. Essa é a tática do personagem de Gere para conquistar a simpatia do Júri, para ganhar todos os casos, e ele sabe fazer isso como ninguém.
Em Chicago, todos aproveitam a situação, todos jogam a favor de si, todos fazem alianças com seus inimigos, todos querem sair ganhando. Menos Amos. Naturalmente há um personagem em Chicago para demonstrar o que acontece aos que seguem os ensinamentos de suas mães. Amos, o mecânico, o marido de Roxie, é responsável por isso. Primeiro tenta assumir a culpa pelo assassinato, depois paga os honorários para Billy Flynn tirar Roxie da prisão, mesmo sabendo que foi traído. Depois é enganado uma centena de vezes por Billy. E continua sendo bom. Amos não trai sua mãe, e não trair é crime em Chicago. Ele paga por esse crime com a completa irrelevância e se torna o senhor celofane, o palhaço que ninguém nota, de quem ninguém sequer se dá o trabalho de rir. Amos é o contraponto da realidade divertida de Chicago, é o certinho, o honesto, o bom marido. Roxie reconhece isso, mas esnoba: “He ain't no sheik/That's no great physique/Lord knows, he ain't got the smarts/Oh, but look at that soul/I tell you, the whole/Is a whole lot greater than/The sum of his parts/And if you knew him like me/I know you'd agree/What if the world/Slandered my name?/Why, he'd be right there/Taking the blame”.
Mas todas essas características não formam um argumento para que alguém assista ao filme. Nenhum desses fatos convencerá o leitor a ir até a locadora e pegá-lo. Jamais alguém se deixará levar pela imoralidade com a mesma facilidade que se deixa por Erin Brockovich. Nem as treze indicações ao Oscar, nem o Oscar de melhor filme, nem os outros cinco Oscars que recebeu. Prêmios não dizem nada – o que são prêmios, afinal, se não a opinião de alguns especialistas em cinema? O verdadeiro argumento para que alguém veja Chicago é Catherine Zeta-Jones. Catherine Zeta-Jones em roupas sexies.
(Peço licença para introduzir mais um parágrafo com parêntesis. Trata-se de um desejo do autor dizer que as fotos de Catherine Zeta-Jones com roupas sexies, ou Cathy, como eu me acostumei a chamá-la depois de tantos anos de convivência, podem ser encontradas facilmente em quaisquer sites de filmes que se prezem, mas é mais fácil ir até o IMDB e fazer uma busca por “Chicago”, clicar no álbum de fotos. Você vai encontrar, também, algumas fotos da Renée com vestido curto e brilhante e, se for gay ou mulher, do Richard Gere de terno).

Um comentário: