sábado, 24 de março de 2007

“Sobre o tempo” por Ana Maria Maia


Tempo, estar no tempo. Tempo, a consciência do tempo. Tempo, a dor do tempo. Tempo memória, tempo esquecimento, tempo, tempo... O dizer no tempo. O dizer do tempo. O dizer é o tempo... Tempo, tempo. Tempo, ser o tempo.

I. Nevers, França. Era guerra. A geopolítica dividia aliança e eixo. As fronteiras passavam de nacionais a ideológicas e militares. A cidade tentava a impressão de cotidiano. O campo de combate era longe, até que se sentisse o contrário. Montanhas, riacho, neblina, casas campestres. A paisagem continuava a mesma, as pessoas não. Um amor que irrompesse o espírito daqueles dias era perigoso, era maldito, era fugaz. O amor, jamais a lembrança.

Ela, a jovem filha do farmacêutico da vila. Ele, um combatente alemão, entre uma parada e outra. O cenário do aparentemente imutável foi palco para o encontro. Nevers foi pano de fundo para o grande amor. Até que o campo de batalha deixou de ser longe e a impressão virou toque. A neblina já não escapava mais por entre os dedos. Ele foi morto no front. Ela ficou em Nevers. Ela, desde então, foi Nevers.

Tempo de ser e de estar. Tempo, pós-tempo. Perto, pós-perto. Em tempo, em espaço. Espaço, outro espaço. Uma voz, outra voz. Sentido, percepção. Percepção da tragédia, sentido da dor. A dor do outro numa voz particular. A dor particular cessa na voz do outro. E dá vazão ao espaço do outro. Num tempo pós-tempo em que o perto separa o ser do estar. O estar do tempo. O estar no tempo. Tempo, tempo.

II. Hiroshima, Japão. A atriz observa para imitar. O arquiteto observa para construir. A atriz, no cinema, vive movimentos condenados. Por mais que únicos em matriz, resguardam-se à morte do momento. São só repetíveis na sua exatidão através do registro, do contar de uma máquina. O arquiteto, por sua vez, não repete tanto. Também não fala tanto. Calcula seu olhar no que fica e, pra isso, apropria-se em estudo e aproximação do que fica.

A atriz não é dali. E está de partida quando conhece o arquiteto. Ama o arquiteto e foge. O repulsa, mas resiste em ir. Confidencia um passado distante. Fria. Confidencia um passado não tão distante. Reticente. Confidencia um passado nunca passado. Debilmente entregue àquele companheiro no estar. Ela não entende a neblina, que vem e vai. Ela não entende a neblina, que consegue ser em todos os lugares. Isso ele entende. Isso o faz entende-la. Isso o faz querer abraça-la num desespero contido.


Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Renais
Com Emmanuelle Riva e Eiji Oxada
90 minutos

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