quarta-feira, 21 de março de 2007

"Audrey Hepburn + George Bernard Shaw = Meu Deus do Céu!" por Gustavo Ferreira


(Esta será uma resenha séria. Se você está com sono, é contra-indicada.
Se, ao contrário, está insone, tem em mãos um excelente
remédio. Algo como três caixas de Valium concentradas em duas páginas.)

Os americanos! Que tipo de gente faria tão bem o papel de ingleses quanto eles?
Tudo bem que Audrey seja belga e que Rex Harrisson seja inglês, assim como quase todo o
elenco. É um filme americano, cheio de americanos na direção e na parte musical. My fair
lady é dos musicais mais bem feitos de todos os tempos, disputando talvez com Singin’ in
the rain e The west side story o topo da lista.
Ao contrário do livro em que se baseou, Pigmaleão, de George Bernard Shaw, My
Fair Lady tem o final esperado pelo público. E é lindo que seja assim. Nenhuma má notícia,
nenhuma novidade ruim. Bernard Shaw foi melhorado.
Falo sério. Foi melhorado como se fosse a coisa mais fácil do mundo, como se, de
repente, alguém simplesmente decidisse que ia melhorar Shaw e pronto, foi lá e fez. Mas
com Audrey Hepburn no elenco, na verdade, tudo deve ficar fácil. Ela é como o gênio da
lâmpada que, lá está o mundo feio, chega Audrey e faz que brilhe. Principalmente com
aquelas roupas, que de defeito só tinham a dificuldade de tirar.
Esfarrapada, vendendo flores e gritando “garn”. Essa é a Audrey do filme. Vem o
pigmaleão Henry Higgins e a adota, como um escultor que escolhe qualquer pedra de
mármore ao acaso – aquela ali, ó, que vai dar uma boa escultura. Não sei o que há para
esculpir na Audrey Hepburn, às vezes fico virando a cabeça atrás de defeitos nela e tudo o
que consigo é um torcicolo. Mas Eliza Doolittle, o personagem dela, ah, essa é cheia de
defeitos, como gritar “garn”, por exemplo. Ao contrário de Audrey, geninho que falava
inglês, francês, espanhol, holandês e italiano, Eliza mal falava inglês. Algum cockney
estranho, apenas. Garn!
Eliza, como devem ter notado, é a Galatéa da história, que, como na mitologia grega,
encanta seu escultor, que esculpirá nela os ensinamentos fonéticos – especialidade artística
de nosso pigmaleão –, algo que, segundo a obra de Shaw, era relacionado à posição social
dos pobres. Um mau Inglês, diz, é o culpado por não conseguirem bons empregos. Higgins
se propõe a ensiná-la
e garante que, ao terminar o curso (super intensivo) de fonética, ela
poderá trabalhar numa floricultura de damas ou mesmo ser dona de uma – o coronel
Pickering pagaria por isso, bem como por seus estudos.
Como na lenda, Pigmaleão e Galatéa se apaixonam. Como na lenda, ficam juntos(oh,
não, estraguei o final!). Bernard Shaw, aliás, apropriouse
indevidamente da mitologia
grega. Fez um final em que eles terminam separados, ousou acabar com o futuro deles.
Nesse aspecto, o filme teria o direito de se chamar Pigmaleão; o drama de Shaw, jamais.
Quis o destino, entretanto que acontecesse o contrário.
O sarcasmo shavian é extremado no filme pelas músicas um tanto cínicas, como
“with a little bit o’ luck”, e pelas interpretações. Quando o coronel Pickering pergunta a
Alfred Doolittle, pai de Eliza, se ele não tem moral, a resposta é “Nah. Nah, can't afford
'em, guv'nor. Neither could you, if you was as poor as me” (“Não, não, não posso mantê-la,
capitão. Nem você poderia, se fosse tão pobre quanto eu”).
Há quem diga que My Fair Lady é uma forma refinada de crítica social. Enxergá-lo
assim seria estragá-lo.
Críticas sociais não são coisas de cinema, são coisas de livros ruins e
de filmes de segunda, como “Terra em Transe” e “Narradores de Javé” (que não incluo na
definição de cinema). Coisa de latino-americano
despreocupado com a estética, ou com
senso de estética torto. Talvez haja alguma crítica incidental, ou mesmo intencional, mas
afirmar que isso motiva o filme é palhaçada. Seria como afirmar que noventa por cento do
filme são casuais, apenas plano de fundo pra outros dez por cento intencionais. Seria,
portanto, criticar o filme da pior forma possível – dizer que ele só é dez por cento do que de
fato representa. É errado falar isso de My Fair Lady. Muito errado. Logo dirão que O Rei
Leão é basicamente crítica social! Calem-se,
adoradores da crítica!

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