terça-feira, 20 de março de 2007

HIROSHIMA, MON AMOUR:os silêncios da memória traduzidos em imagem e palavra por Rafaela Vasconcelos


Se em 1959, Alain Resnais inovou o fazer e o sentir cinematográfico com Hiroshima, mon amour, chegando, inclusive, a ser premiado pela Crítica em Cannes (1959) e em Nova Iorque (1960), é intrigante e, ao mesmo tempo, excitante constatar que, quase meio século depois, essa película persiste com uma proposta estética diferenciada, rara.
Aqui, a clássica linha narrativa de início-meio-fim dilui-se, no roteiro de Marguerite Duras, em meio a uma série de fluxos de impressões, falas, imagens, lembranças, silêncio. Não se trata de uma colagem aleatória, mas de um arranjo, ou melhor, desarranjo entre o presente e o passado, entre o amor e a destruição, entre o Eu e o Outro.
Já na primeira cena, Hiroshima... mostra-se poético: ao som de uma música grave, poeira/ cinzas caem sobre dois corpos abraçados; o enquadramento é tão fechado no encontro dos braços e das pernas, que quase pode-se sentir a pele; as vozes, por sua vez, permitem identificar um casal. Ela fala que lembra de Hiroshima, ele nega.
Através de fusões, tem-se a imagem do hospital e do museu da cidade. A entrada da câmera, aqui, aliás, conduz o espectador a um passeio lento, inquieto entre os corredores, numa espécie de apresentação dos espaços, ou mesmo uma memória fotográfica. A partir daí, Resnais trabalha com contrastes: ao mesmo tempo em que ela diz que “Hiroshima recobriu-se de flores”, têm-se imagens de feridos, desabrigados; mãos deformadas alternam-se com os dedos dela, em detalhe, tocando o dorso dele. Enquanto ela repete “você está me matando; você me faz bem”, a câmera apresenta, num ritmo leve, imagens de ruas, de um mercado e acaba por mostrar, pela primeira vez, os rostos dos protagonistas.
Nesse intricado diálogo entre texto e imagem, Resnais provoca, no espectador, dúvidas e inquietações. Na verdade, quem é ela? Quem é ele? Que personagens, ou melhor, pontos de vista estão por trás dessas vozes? Nesses primeiros minutos, o filme assume um tom quase documental - na medida em que lança mão de imagens de arquivo dos estragos da hecatombe nuclear – e, ao mesmo tempo, traz questões filosófico-existenciais.
Ela, uma atriz francesa que está em Hiroshima para atuar num filme pacifista, parece fugir de si mesma, de suas lembranças, de Nevers; ele, um arquiteto japonês, depara-se com o novo e vê, nela, “o símbolo do esquecimento do amor louco”.
Uma das passagens mais reveladoras e bonitas do filme consiste na conversa dos dois no bar/ restaurante. Com uma fotografia escura, destacada por algo como lanternas chinesas, o ambiente é um tanto onírico, propício para ela trazer, à tona, suas recordações, seu “eu” sufocado. Somado a isso, o espectador tem seu olhar conduzido para certos detalhes, em especial, para a pele, para o toque, seja dos rostos, das mãos, ou até da face com o copo. Na mesma linha, algumas reminiscências dela, à primeira vista, prosaicas – o barulho da tesoura sob sua nuca aliviando a dor da perda de seu amado; as mãos dele; o céu visto através do círculo central da grade da janela da adega – sugerem, na verdade, sentimentos e impressões.
E o mais envolvente não é o que está se contando, mas sim, como é (des)estruturado por Resnais: imagens das duas narrativas – lembranças dela em Nevers (passado) e o encontro deles em Hiroshima (presente) – são alternadas por fusões/ flash backs; o áudio e o visual são marcados por um descompasso temporal; a atriz confunde memória e realidade, chegando mesmo a dirigir-se ao amante japonês como se fosse seu primeiro amor, morto há catorze anos.
Num conflito constante entre o sentir e o pensar, os protagonistas firmam uma caótica relação de cumplicidade. Sim, porque, ao contar sobre sua história em Nevers, a francesa revela-se profundamente ao outro; suas recordações, angústias, dilemas são expostos apenas a ele, que começa a compreender, então, que foi em Nevers que ela se tornou o que é hoje. E, embora não tenha sido seu primeiro amante, foi ele quem penetrou em seu íntimo, seu universo simbólico. E, na medida em que compartilham uma memória, criam uma identidade: ele, Hiroshima; ela, Nevers.
Nessa perspectiva – totalmente diferente da do amor romântico – Hiroshima... surge como um tratado poético sobre a impossibilidade do esquecimento, da negação do ser humano, enquanto animal histórico. A recorrente narração em off, com passeios um tanto lentos da câmera pela cidade, seus prédios, parques, luzes parece acompanhar o ritmo incerto dos personagens, ou mesmo potencializar a expressividade da narrativa.
O limiar entre o silêncio e a palavra, atrelado a um caminhar e um olhar, por vezes, tensos, faz com que Hiroshima, mon amour tenha uma atmosfera perdida entre o estímulo e a ação. É como se os fotogramas materializassem um intenso fluxo introspectivo de imagens (lembranças) e texto (sentimentos e idéias). Daí, sua multiplicidade de contextos, subtextos mas, sobretudo, de significados.










REFERÊNCIAS

GRÜNEWALD, José Lino. Um filme é um filme: o cinema de vanguarda dos anos 60. São Paulo: Companhia da Letras, 2001.

HIROSHIMA, mon amour. Direção de Alain Resnais. Paris: Argos, Como, Däiei Motion, Pathé, 1959. Drama, 90 min., son., pb, 35 mm.

www.geocities.com/contracampo/hiroshima.html Acesso em novembro de 2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário