terça-feira, 27 de março de 2007

"UM MUNDO ORDINÁRIO NO CINEMA: o caso – ou quase isso – de No Sabe/ No Contesta" por Rafaela Vasconcellos


el nuevo cine argentino está mucho más interessado em mostrar mundos que em mostrar personajes, héroes – Alan Pauls



Na passagem de uma sociedade moderna para uma pós-moderna, os aspectos culturais e políticos alteram-se profundamente. A fragmentação do sujeito – inclusive o Estado – com o colapso dos valores iluministas, aliada à intensificação da “hibridização cultural” desencadeada pela globalização, configuram a contemporaneidade como uma pluralidade de valores, de subjetividades.
Nesse sentido, a arte – e aqui se destaca o cinema –, ao participar da dinâmica da representação da realidade, reflete tal quadro. Gonzalo Aguilar em seu livro Otros mundos..., aponta que os filmes do novo cinema argentino – dos anos 90 e 2000 – não se detém a preocupações políticas, sociais ou de identidade, recorrentes na produção da década anterior. Hoje, ao que parece, as histórias lidam mais com a indeterminação, a ambigüidade temática, abrindo horizontes pra interpretação. Portanto, uma leitura, por assim dizer, mais engajada, depende do espectador. Afinal, como afirma Graeme Turner,

Um dos resultados da ruptura entre os estudos sobre cinema e uma tradição predominantemente estética é o abandono da idéia de que num filme havia um núcleo de significado que o público devia descobrir. [...] Os significados são vistos como produtos de leitura de um público e não como uma propriedade essencial do texto cinematográfico em si. O público dá sentido aos filmes, e não meramente reconhece significados ocultos. (TURNER: 1997, 122)

Para além da concepção de cinema – seja como forma de ação, instrumento político, de mudança, integrado ao desenvolvimento social (ROCHA, 1963), ou como uma linguagem, que simplesmente conta histórias, apresentando mundos e personagens (AGUILAR, 2006) – o fato é que a criação de novas inquietudes estéticas relaciona-se com necessidades de transformação. Isso, na busca pela dissipação do sistema de representação vigente, adequado ao padrão de referência legitimado socialmente.
A partir dessa perspectiva, então, pretende-se, aqui, versar sobre o filme No sabe/ No contesta, ou simplesmente, NS/NC, do argentino Fernando Musa. Produzido em 2001, mas lançado só no ano seguinte, NS/NC é uma película que trata, essencialmente, do diálogo cotidiano, por vezes irônico ou inusitado, entre pequenas histórias de indivíduos, sejam eles conhecidos ou não.
Numa narrativa fragmentada, em que são apresentados, quase sempre, dois pontos de vista sobre uma mesma situação, ou então, acontecimentos vivenciados por uns personagens, mas desconhecidos por outros, o filme possibilita ao espectador um maior entendimento dos fatos e pensamentos em jogo. É como se Musa fizesse confidências e instaurasse uma certa cumplicidade. Até o recurso utilizado – tela preta, com alguma frase ou palavra sugestiva/ intrigante – lembra, um pouco, a sensação de quando se é puxado de uma conversa em grupo por alguém que lhe cochicha algo no ouvido; ele retira, por um instante, a atenção da história em si para criar um ambiente de segredo, explicação e, principalmente, dúvida. Esse mecanismo envolve quem lhe assiste, no enredo, sem, no entanto, entregar tudo digerido. Ao contrário. A cada mudança de tomada de ângulo, o filme ganha uma leve dinamicidade e conduz a investigação do espectador.

Uma experiência pessoal

Da primeira vez que vi NS/NC – há uns dois anos -, eu tinha acabado de assistir a O bandido da luz vermelha, de Sganzerla. Trabalhos fortemente distintos. Mas, talvez, tenha sido justamente pela discrepância que se apresentava diante de meus olhos, que eu tenha me sentido atraída pelo filme argentino. Ainda imersa no agitado ambiente preto e branco de provocação e descaramento de Sganzerla, vi aquela primeira imagem, colorida, de três jovens um tanto desolados e tensos num carro, com o letreiro em espanhol, que me convidava para outra coisa, outra história – desconhecida e, aparentemente, simples.
A sensação inicial de que se está vendo algo em andamento ou um caso inacabado, logo vai sendo esclarecida por Joaquín (Mariano Martínez), personagem central que perpassa, praticamente, todas histórias da película, chegando mesmo a contá-las em certos momentos. Porém, não se trata, exatamente, de um narrador típico. Não é bem isso. Na verdade, numa metalinguagem, Joaquín observa seus amigos, quase sempre, através de um gesto sugestivo com os dedos indicadores e polegares, numa espécie de enquadramento do retângulo cinematográfico – é como se cada vez que ele fizesse isso, chamasse a atenção para alguém, para o surgimento de uma nova situação, começo de uma outra história. Ou mais, ao filmar seus amigos, à distância, em Super 8, e explicar suas circunstâncias, ele acaba por legitimá-los como parte de uma história que não apenas está sendo vivida, mas contada, compartilhada.
E, talvez, seja essa idéia que Musa queira trabalhar: a de que qualquer um é protagonista de sua própria narrativa, seja ela a mais prosaica; que poderia muito bem ser personagem central, ou mesmo coadjuvante de um filme, independente de sua ordinariedade, de suas inclinações (ou a ausência delas) político-ideológicas, morais. Basta ter acesso a uma câmera e fazê-lo. No caso de NS/NC, uma parte dos causos é apresentada sob o olhar íntimo de Joaquín, por sua memória e interpretações, ao passo que outros são submetidos, evidentemente, às intenções explícitas de Musa.

Impressões à terceira vista

A película, em seus primeiros minutos, até chega a insinuar idéias acerca das implicações de escolhas tomadas, da opção por um caminho em detrimento de outro, mas só; não vai além de uma sugestiva percepção de Joaquín, através da máxima de que o arrependimento é um sentimento tardio. É algo como uma daquelas idéias ‘relâmpago’ que se esmaecem com a mesma velocidade com que surgem. Mas, ao observar, com mais cautela, os rumos que o filme toma, talvez, tenha-se a impressão, realmente, de que é isso o que acontece com os personagens. Musa pode não se aprofundar nessa questão de forma explícita, mas consegue colocá-la – ainda que de forma sutil – nos diferentes pontos da narrativa: Marcos, depois de desconfiar de Sofia e deixá-la ir embora; Joaquín, ao deixar o piano de sua irmã aos cuidados de Damián e David e chegar atrasado no encontro com Laura; o pai dele, ao penhorar todos os bens e falir; ou mesmo Laura, por ter dito uma simples frase. Todos, no fim, sempre se arrependem de alguma coisa.
É importante, porém, não tomar tal observação como uma alegoria, seja para o caso da Argentina do começo do século, seja para a juventude. Até se pode, mas, sejamos cautelosos. Até porque, como afirma Robert Stam,

A tendência alegórica disponível a todas as formas de arte é intensificada na obra de cineastas intelectualizados profundamente marcados pelo discurso nacionalista, que se sentem compelidos a falar pelo conjunto da nação e a respeito de seus problemas, em um fenômeno que é ainda mais exacerbado no contexto de regimes opressivos. (STAM: 2003, 317)

Se os cineastas ‘terceiro-mundistas’ dos anos 60 viam-se como parte de um projeto nacional, hoje, com o discurso pós-colonial – ou seria melhor dizer, pós-moderno? – a postura é outra. Segundo Gonzalo Aguilar,

Construir el guión a partir de la pergunta “cómo somos” dejó de ser interesante desde el momento em que la comunidad y la historia que le daba sentido a esa pergunta entraban en um proceso de descomposición o estaban más definidas por procesos contemporâneos globales, no necesariamente nacionales. (AGUILAR:2006, 28)

No caso de NS/NC, é o prosaico, o pequeno, ou, no máximo, o extraordinário que pode existir no ordinário; são alguns detalhes – ver dois amigos à caminho do terminal pelo retrovisor do carro; uma conversa corriqueira na cozinha, enquanto se prepara um chá; uma briga estúpida; uma associação da espuma do café a um filme de Godard; dedilhar um piano, que está sendo transportado, na rua; filmar, em super 8, a namorada comendo tangerinas na estrada em meio a uma viagem de carro. Seria, então, o caso de uma exposição da banalidade da vida contemporânea ou uma tentativa de uma possível aproximação? Mas, com quem? De que marco social essas imagens são, por assim dizer, documentais? Se há prazer naquilo que nos é familiar e em ver formas e imagens pelo simples gosto de observá-las (TURNER, 1997), então, quem faz parte desse mundo de NS/NC? Será que só jovens da classe média argentina?
Ora, o que se verifica no filme é uma certa amnésia histórica, uma a-historicidade, quer dizer, não se faz menção específica ao período histórico ou à localização geográfica – a única citação que se faz é à Córdoba, quando Sofia ou a irmã de Joaquín viajam. Apesar de se ter várias cenas externas, com personagens atravessando ruas e avenidas, não fica evidente em que lugar essas pessoas vivem; não são as imagens clichês da Argentina; são, antes, ruelas de bairros residenciais – que até podem lembrar, às vezes, paisagens de países desenvolvidos. A vivência da cidade, aliás, parece se resumir, em alguns momentos, ora ao quiosque, onde Laura trabalha, ora ao seu apartamento, ou ainda a alguns cômodos da casa de Joaquín. Enfim, os cenários em que o filme transcorre são lugares comuns: locadora, loja de conveniências, apartamento, carros, ônibus, ruas, parque; lugares de passagem que não são modificados por quem os freqüenta – a não ser a casa de Joaquín, que está sendo esvaziada às pressas.
Interessante notar, inclusive, nesse fragmento – talvez o único que parece dialogar com a crise monetária do país na época –, como cada um está imerso, apenas, em seus interesses e problemas (o pai falido, com seus livros; Paulina, com seu piano; Joaquín, com sua câmera); seria uma metáfora da desestruturação da família, das relações em decomposição? – a figura da mãe, aliás, nem chega a aparecer.
Na verdade, o filme mais parece uma rede de situações que envolvem indivíduos. As tensões – pouco profundas, na verdade – são mais introspectivas, psicológicas. As pessoas – em sua maioria, jovens – têm uma postura distanciada, no que diz respeito a questões sociais, políticas ou identitárias; lidam, apenas, com seus próprios anseios e inquietações. É como se não houvesse tempo para se preocupar com questões maiores, com os outros. Poderia existir a máxima de que, antes de fazer a revolução social, é preciso fazê-la dentro de si mesmo, mas nem isso. Parece se tratar mesmo de uma juventude que traz em si, ainda que inconscientemente, a descrença/ declínio das esperanças utópicas revolucionárias. Talvez esteja mesmo latente a idéia apontada por Zygmunt Bauman de que, afinal, ‘se emancipar de quê e para onde?’ Não se sabe, porque há uma deriva, transitoriedade constante; sem focos de solidez, de acomodação. Tanto, que os personagens estão se movimentando constantemente.
Porventura, a que melhor represente tal realidade seja Laura: não se sabe de onde ela vem, desde quando vive ali, se tem família. Sabe-se, apenas, que ela quer fazer vestibular, mas não tem segurança se vai passar; que tem vontade de largar o emprego, mas não pode, porque não quer “parar numa fila de emprego”. Ela lembra, de certa forma, o que Aguilar identifica como personagem fora do social:

De repente, comienzan a aparecer una serie de personajes amnésicos, verdaderos zombies, que no vienen de ningún lugar ni si dirigen a ningún outro, obsesionados por um mapa indescifrable. [...] Los personajes de vários de los filmes de los noventa son marginales em el sentido em que los define Daney: no portan em esa marginalidad uma idea de cambio y de heroicidad [...], sino, simplemente, la condición de su exclusión y de la disponibilidad absoluta. (AGUILAR: 2006, 30)

É isso. Os personagens são comuns e acabam por deslizar pela narrativa, assim como o espectador; não representam, necessariamente, posturas morais ou políticas. Fernando Musa parece até, em alguns momentos, ‘brincar’ com o discurso hegemônico, ou melhor, querer explicitar certos comportamentos e clichês: o anúncio expresso do final com epílogo opcional e sem moral da história; as passagens em super 8 para representar a imaginação/ desejos do protagonista, ou mesmo a aceleração das imagens do trânsito, em detrimento da de Laura, para representar o tempo. E, ao trabalhar com esses recursos – um tanto metalingüísticos – Musa permite uma certa aproximação com o espectador, revelando-lhe a subjetividade dos personagens e a intencionalidade por trás de seus atos mais simplórios. Aqui, a sensação de ingenuidade ou espontaneidade é rompida de uma forma leve, sem maiores provocações.
A própria idéia do curta de Joaquín dialoga com o que parece ser a do filme: duas pessoas desconhecidas, que tocam, uma, piano, e a outra, violão; são sozinhas e decidem passear no mesmo dia, pensando, cada uma, em suas coisas; se cruzam numa praça, mas não se falam, apenas se olham; pensam um no outro; se separam e cada um toca seu instrumento em sua casa; sem saber, tocam uma sinfonia silenciosa de domingo. É essa sensação de que ‘tudo se relaciona’ que permeia todo NS/NC; em maior ou menor grau, as coincidências, o acaso interferem na vida das pessoas. É como se de forma silenciosa, no acomadamento cotidiano, a comunicação entre os fatos e as pessoas se desse e instaurasse uma simpática ironia, a ponto de até o inesperado/ acidental adquirir certa lógica no desenrolar da narrativa.
Talvez seja por isso que a música – recorrente e um tanto apelativa – parece pertencer ora ao espaço, ora aos personagens; como se tentasse criar o clima um tanto melancólico do acaso, dos imprevistos, dos desencontros, enfim, das pequenas frustrações e imprevisibilidade do dia-a-dia.
Nessa transitoriedade, a câmera acompanha, à distância, como um observador que se mexe, tanto para ter um melhor ângulo, como para não ser flagrado. Às vezes, porém, têm-se planos fixos e médios, pouco expressivos, chegando mesmo a lembrar um pouco a estética televisiva. A própria narrativa de NS/NC, aliás, nem é tão original assim – mas, também, o que é original hoje? Robert Altman, em 1993, já impressionava, em Shot Cuts - Cenas da Vida, com a estrutura multiplot, ou seja, um modelo de roteiro com várias histórias paralelas. Películas mais recentes como a francesa A cidade está tranqüila ou a mexicana Amores Perros, ambas de 2000, também surgem com mais expressividade.
De fato, No sabe/ no contesta está longe de ser uma obra-prima. Tanto, que foi mal recebido pela crítica argentina e considerado, dentre o mais aprazível dos atributos, regular. Trata-se mesmo de um daqueles filmes que deve ser visto sem grandes expectativas, por acaso, e, de preferência, uma vez – ou, ao menos, depois de um grande intervalo de tempo. Sim, porque, uma vez conhecidas suas histórias, a relação com o filme se esmaece, na medida em que não é capaz de envolver, outra vez, o espectador – eis o que se constata, após assisti-lo três vezes.
Na tendência do novo cinema argentino, a relação com o espectador sofre fortes impactos. Os finais abertos, sem qualquer espécie de tese; a ausência de ênfases, de alegorias; a maior ambigüidade dos personagens, que, muitas vezes, surgem imersos no que lhes acontece; a omissão de referências nacionais contextuais, opondo-se à demanda identitária ou política, além de uma trajetória um tanto errante na narrativa, fazem com que as histórias sejam opacas e, não raro, o espectador fique com a sensação de que ‘o filme não diz nada de mais’.



Da ordinariedade real

Esse jeito pós-moderno de ser, essa ‘fluidez’ constante chega mesmo a ser intrigante. Não que sua existência seja negada, mas é difícil não questionar sua legitimidade. A arte, enquanto ambiente de transgressão de valores, é inconcebível sem ser uma prática social. Quando o cinema contemporâneo surge com a busca pelo pequeno, pelo banal, é óbvio que lida com questões da vida em sociedade; é válido. Até porque, é na simplicidade, no cotidiano, que se pode perceber a expressão de abstrações culturais. O perigoso, porém, é configurar tal tendência como regra. Seja qual for a intenção – reflexiva, crítica, prepositiva, simplista, entretenimento – o importante é que haja espaço para qualquer tipo de filme.
Partindo-se da premissa de que o cinema é um “reflexo” das crenças e valores dominantes de sua cultura, então essa postura do filme – versando, aparentemente, sobre nada – implica num comportamento que acontece na Argentina? Ora, isso seria uma generalização descabida; uma visão reducionista. No entanto, pode-se pensar o seguinte: se filmes como NS/NC são produzidos, lançados, então é porque há uma abertura, uma permissão da esfera pública argentina. Talvez, possa-se considerá-los índices de leitura na busca do discernimento da redefinição dos valores que os fundamentam/ legitimam. Como afirma Aguilar:
Ante a desintegración de la esfera pública (sea por acción de la globalización, de los medios masivos o de las políticas de gobierno), los nuevos realizadores no se han asignado uma función previa sino que utilizaron el lenguaje del cine para investigar sobre sus propios posicionamientos, sobre sus propios deseos informes. (AGUILAR: 2006, 28).

E é isso o que acontece com NS/NC. A ordinariedade, aqui, chega num ápice, a ponto de vir, à tona, a idéia de que, em vez de buscar histórias ou outros mundos, talvez seja melhor viver o seu.




REFERÊNCIAS

AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos: um ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2006. 256 p.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

NO SABE/ no contesta. Direção de Fernando Musa. Argentina, 2001. 1 filme (87 min.), son., color., 35 mm.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1963. 152 p.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003. 400p.

TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997. 174p.

< http://www.cinenacional.com/peliculas/index.php?pelicula=2417 > Acesso em 4 março de 2007

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