terça-feira, 20 de março de 2007

“Cinema, dentro e fora do cubo branco” por Ana Maria Maia


Um ensaio sobre o olhar cinematográfico de Cindy Sherman em Untitled Film Stills (1977 – 1980) e Office Killer (1998)

Por Ana Maria Maia

“The stills may not look as though they all express the same auteur, but the appearances do not look as though they all belong to the same girl. It is the external knowledge that underneath the diverse appearances in the same person as there is behind the works themselves that has made Sherman’s stills into one of the most widely and diversely analyzed bodies of work in recent times”, disserta Artur Danto, em seu Despues del fin del arte. O objeto da análise do filósofo da arte são os Untitled Film Stills (1977 - 1980), série que inaugura a trajetória da artista americana Cindy Sherman.

Um conjunto de 69 fotografias still-life de cenas aparentemente já vistas em algum filme B. Femme fatales, bandidas, mocinhas, enfermeiras, intelectuais, viúvas, loucas... Uma mulher sempre em evidência, mas sempre causando estranhamento. O estranhamento de ver em todas aquelas histórias –o conjunto adornos, gestual e locação sugere histórias- um mesmo olhar autoral. O olhar de Cindy Sherman que, além de arquitetar cenografias e figurinos, protagonizava todos os stills.

Não eram filmes reais, mas resultados da apropriação do universo cinematográfico pela artista. A categorização do mundo e, especialmente da mulher, que o cinema materializa -como veículo, indústria, mass media- foram os indícios de contexto social que a feminista Cindy Sherman primeiramente reverteu em poética.

Difícil encontrar exemplos em que, como nesse caso, o marco inaugural de uma pesquisa tenha tamanho peso dentro de uma trajetória artística. Como confessa a própria fotógrafa, em entrevista para o site da Tate Modern, de Londres, Inglaterra: “I was constantly being reminded of that by people in my family making jokes like, 'Oh, yes, she's still just dressing up.’”

O ato obsessivo de fotografar-se e, mais adiante, fotografar bonecos (Pink Robes [1982], Disaster [1986 a 1989], Sex Pictures [1992]) posando esteriótipos perdurou pelos anos 80 e 90 e ainda contamina a carreira de Sherman, que, apesar de ter expandindo sua noção de autoria, permanece praticando o exercício do ser e do outro, como anunciava nos Unititled Film Stills.

O flerte antigo com a linguagem do cinema impulsionou, em 1998, uma das mais ousadas “expansões de noção de autoria” da artista. Uma expansão que desamparou Sherman do sistema de leitura e legitimação seu de origem –o da arte-, que encontrou repúdio na crítica especializada, mas que dinamizou –por dar vida, submeter à falta de legendas e, por conseguinte, entendimento- problemáticas centrais de sua obra.

A empreitada chama-se Office Killer, primeiro e único filme fotografado e dirigido por Cindy Sherman. Um roteiro de humor negro e moral final, uma produção que, mesmo próxima do amadorismo –não interessavam à artista preciosismos técnicos nem complexidades narrativas-, inseriu-se num circuito de distribuição e comercialização.

Isso, sim, era importante para Sherman. Isso denota o diálogo truncado que vem, ao longo de sua carreira, estabelecendo entre cinema e artes plásticas. Enquanto os Untitled... imortalizaram-se como o produto do cinema incorporado pelas artes, Office Killer veio a ser a experiência artística disseminada através da exibição cinematográfica.

“When consumer produce is placed in a museum it is reinvested into a new economy: an economy of art, which does not operate (overly, ate any rate) on principles of commerce. (…) In other words, the institucional setting provides the object with a brand new set of associations, so that we do not expect the same pay-off from an artwork as from a consumer product”. A assertiva de W Norton, para o catálogo da exposição Virtual Reality, da National Galery of Austrália posiciona os lapsos de consumo que Cindy Sherman administra.

O cruzamento que atribuiu status de bem simbólico aos stills, expôs Office Killer a critérios e parâmetros a que, certamente, não correspondia. Fora da chamada “economia da arte” –museus, galerias, coleções-, era apenas mais uma trama de horror. Talvez por isso tenha virado alvo de críticas ferrenhas do público e da imprensa. O filme, naquela circunstância, era um bem de consumo, a serviço da indústria do entretenimento e não da compreensão de uma pesquisa visual.

A sinopse despista: “When Dorine Douglas' job as proofreader for Constant Consumer magazine is turned into an at-home position during a downsizing, she doesn't know how to cope. But after accidentally killing one of her co-workers, she discovers that murder can quench the loneliness of her home life, as a macabre office place forms in her basement, populated by dead co-workers.”

Não poderia soar mais ordinário e adolescente. E, para o espectador desavisado da sagacidade de Cindy Sherman e do que sua obra representa para a arte contemporânea, realmente o é. Comparável a qualquer Pânico 1, 2 ou 3. Dos formatos imortalizados por Hollywood tudo é aproveitado: a protagonista em crise, a rejeição a la high school, os flash-backs explicativos, o triunfo da moral ao subirem os créditos. Moral, nesse caso, do velho “quem ri por último, ri melhor”, em tom macabro de vitória via eliminação. Literalmente, assassinato em série.

Tema que a artista vinha ensaiando desde 1994 com o trabalho Horror and Surrealist Pictures. Pedaços humanos, máscaras desfiguradas, sangue artificial e látex para moldar os clichês do horror. Paixão confessa pela própria Cindy Sherman, que diz ter em mente uma vasta filmografia do gênero.

Filmografia introjetada –e expressa-, na verdade, da mesma forma que as películas de musas B que inspiraram os Untitled... Como pastiche, sarcasmo da forma e simulacro do ambiente social de produção. O que, em Office Killer, Sherman resolve com desenvoltura e escracho, haja vista o monte de cadáveres borrachudos e cenograficamente sanguinolentos que a pobre assassina Dorine amontoa em seu porão.

Só não vê quem não quer: em conceito, dentro de uma lógica de apropriação, o Office Killer é também um Untitled Film Still. Digamos que o de número 70, edição comemorativa, que, apesar de reproduzir formatos, atribui novas perspectivas para a obra. Primeiro por ser filme e não fotografia –mesmo que feita como registro de cenas de filmes- e depois por excluir a figura de Sherman de qualquer possibilidade interpretativa.

Em Office Killer ela é diretora e fotógrafa e nem uma figuração a mais. Sua autoria, nesse caso, é, em igual escala, mais restrita e mais certeira. Restrita por ter se dissociado do ser em cena e certeira por ter orientado, com foco integral, o outro em cena. A quebra da medida universalizante –ela própria- denota a superação de questionamentos já cristalizados no conjunto da obra –acerca da estandartização e da fragmentação do indivíduo na pós-modernidade- e refina o senso diretor da fotógrafa.
Senso que rastreou a timidez gritante de Carol Kane para o papel de Dorine Douglas, de revisora fracassada da Consumer Magazine a serial killer do mundo corporativo. A atriz é a única do elenco que já possui algum currículo de atuações –foi indicada ao Oscar de 1976 por Hester Street- e, em meio a uma enxurrada de resenhas negativas, é, mais uma vez, a única que sai ilesa, aliás, com bons comentários.

Como o do crítico Constantine Santas para a revista virtual Senses of Cinema: “What compensates for the basic amateurishness of this movie is a brilliant performance by Carol Kane as the deranged Dorine Douglas and several harrowingly suspenseful murder sequences that leave audiences grabbing for their seats”.

Só para situar: a renegada e, portanto, solitária Dorine Douglas -tiranizada na infância pelos pais e hostilizada no ambiente de trabalho pelos colegas- presencia acidentalmente o eletrocutamento do companheiro Gary Michaels. Não só não o socorre, como sente um mórbido prazer em guarda o cadáver. Daí em diante planeja mais cinco mortes, cada uma a sua maneira, todas com o mesmo final: o porão de sua casa.

O passado de Dorine justifica seus atos e constrói um leque de referências visuais levadas a risca pela direção de arte do filme. Ela é desajeitada, usa óculos grossos, cabelo sempre preso e roupas largas e demodé. Ela é insegura e reprimida, tem a fala trêmula e sua vergonha a impede de conversar bobagens com quem esteja a seu redor.

Está fechado o clichê, está construído o personagem. Cindy Sherman foi precisa em Dorine Douglas. Ela era seu foco de significado, ela era a mulher que, por si só, reunia várias outras no contar de uma história. Cristalização inevitável para dizer que: 1) Carol Kane foi o corpo, 2) o filme foi o espaço. Conclusão insistente: Office Killer, propositalmente ou não, deu vida a uma nova musa B, a um novo still.

Enquanto experiência artística, quebra a promessa de Sherman de não dar continuidade à série fotográfica, que diz ter esgotado qualquer possibilidade de esteriótipo de mulher depois de 69 heroínas. Dorine denota o fracasso estetizado. Privada do glamour lacônico peculiar às primeiras musas, passa a integrar o grupo como anti-heroína. Não evoca padrões de consumo, mas atesta ironia em tirar do escuso um modelo de superação.

Office Killer e o padrão Dorine atualizam os questionamentos sobre o papel da mulher, que a artista teceu nos anos 70, 80 e, agora 90. As indagações já eram outras: não mais mulher-objeto, mulher-fetiche; mas mulher-solidão e mulher-crise numa década de desapego, banalização da violência e erradicação completa de valores ético-familiares. De qualquer forma, permanece o incômodo ao espectador do tempo corrente em perceber-se igual e, portanto, inautêntico, irreal, efêmero.

Cindy Sherman, ao questionar o sujeito de quem fala e, por conseguinte, o sujeito de quem capta atenção, está problematizando também a si mesma. Em primeira instância enquanto “igual” –a exemplo do tornar-se medida nos Untitled...­- e, logo, enquanto artista, mediadora de ensaios taxonômicos sobre o mundo que percebe.

Que lugar deve ocupar o artista? Com quem deve comunicar-se? A opção por falar em códigos que não os seus -tanto em Untitled..., mas mais ousadamente em Office Killer- evidencia a autonomia da artista em distanciar-se do circuito que a legitima e a compreende e arriscar-se na vida dos “iguais”, na língua “sem legenda” dos “iguais”.

Arte, para Cindy Sherman, é estar em todos os lugares. Essa é sua força, essa é sua política, essa é sua persistência. O incômodo de ambas as partes sempre deve haver. Isso é arte. Arte é trânsito, é perspectiva, é desentendimento, é representação. Dentro e fora do cubo branco.

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