terça-feira, 20 de março de 2007

"CINEMA, SIMPLES ASSIM" por Rafaela Vasconcelos


Assistir ao curta La Jetée, hoje, 45 anos depois de sua produção, é mesmo uma sensação acalentadora. Sim, porque, num período marcado pelas tecnologias digitais, em que a velocidade das imagens, não raro, supera o piscar de olhos, experiências como este “photo-romance” relembram a idéia de que nada é mais envolvente e tocante que a simplicidade.
Em pouco menos de meia hora, através de um cadenciamento de imagens estáticas, fotografias, Chris Marker impressiona pela vivacidade e força com que conduz o espectador a uma viagem intensa às lembranças e devaneios de um “homem marcado por uma imagem da infância”. A beleza e a expressividade das fotos em P&B – que parecem captar a mesma sensibilidade de certos trabalhos de Sebastião Salgado – são engenhosamente articuladas a uma literatura – presente na criação de uma história narrada em off – a ponto de não se saber se acontece uma narrativa, a partir das imagens, ou o contrário. Ainda nesse intricado processo, a música, os sons, ruídos, sussurros potencializam as sensações e a tensão.
Nesse sentido, mesmo sem ter imagem em movimento, La Jetée surge como cinema dos mais poéticos. Na condução do olhar, na criação de uma atmosfera que transcende o lado da ficção e envolve o espectador na projeção da película, o curta parece materializar a idéia de Deleuze de que a câmera instaura uma consciência, não meramente pelos movimentos que ela apreende, mas, principalmente, pelas relações psico-intelectuais, nas quais, é capaz de penetrar. Assim, o filme não se encerra na combinação entre texto, imagem e som, mas numa quarta percepção, presente em quem lhe assiste.
E é a partir desse diálogo entre as diferentes linguagens, que La Jetée traz, à tona, a chance de se representar, ou melhor, refletir abstrações como o movimento, a memória e o tempo. Temas existenciais – complexos – tratados a partir de elementos tão simples, mas brilhantemente bem elaborados, que chega a ser intrigante. Dentre as várias sensações que o filme provoca, talvez a mais latente seja a inquietação – tanto no que diz respeito à linguagem cinematográfica, como filosófico. É como se o filme exalasse a subjetividade do personagem ou do diretor, a ponto de despertar a do espectador.
Nas suas indas e vindas no tempo, o protagonista tem a possibilidade de, como uma criança, se fascinar, se perder no deslumbramento de ver, sentir, descobrir coisas e pessoas, ou mesmo, atormentar-se a cada incerteza. E o fato de a película ser em preto e branco já traz a sensação de resgate dum passado; como se a impressão de um déjà vu permeasse todo o filme; como se não fosse possível escapar do tempo... Talvez, o curta sintetize a dúvida de Paul Valéry de que se “pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?”
Bem, questões como a impossibilidade de trazer de volta um instante perdido/ único ou de ter suas lembranças vividas duas vezes parecem ser uma angústia que acompanha a humanidade desde os tempos mais remotos. Das pinturas nas cavernas até os vídeos contemporâneos, é como se sempre tivesse havido a necessidade de congelar um instante, uma vivência, a lembrança. Nesse sentido, o uso das fotografias é sugestivo. De acordo com Roland Barthes, seu traço fundamental consiste num “retorno do morto”: ao imobilizar a cena no tempo e no espaço, indicando apenas que ela existiu realmente, a foto remete a um ato nostálgico, a uma situação contemplativa de algo que já passou e que nunca irá se repetir; é a volta ao que foi e não é mais. De certa forma, é o que o filme parece retratar. Por mais que o protagonista tente lutar em suas lembranças, revivê-las, não consegue ter outro desfecho. Assim, a pausa entre as imagens, aqui, parece ecoar o silêncio, ou melhor, o hiato entre o turbilhão dos pensamentos e envolve o espectador, que, aos poucos, vai tendo o foco de sua atenção ajustado.
Mas, para além da complexidade de suas possíveis temáticas, La Jetée seduz muito mais por sua capacidade de se comunicar pela emoção. Trata-se mesmo de um daqueles filmes que cria um estado de espírito à sua volta; que cativa por sua expressividade poética, ao passo que enreda na sua complexa simplicidade. É a prova de que, com poucos recursos, é possível fazer uma obra encantadora; de que a arte, em sua magnitude e essência, grita, mesmo no silêncio.


REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 186p.

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