terça-feira, 20 de março de 2007

"Eu vou bufar e bufar e a sua casa eu vou derrubar" por Gustavo Ferreira



"Os Pássaros", de Hitchcock, é do tipo de filme que desperta perguntas que parecem não ter resposta: como fizeram para limpar as fezes de todos aqueles corvos, todas as gaivotas? Qual o peso total de todos aqueles dejetos? Quantos litros de desinfetante foram necessários? Cinqüenta? Cem? Mil? Cem mil? E qual o melhor aroma para neutralizar o cheiro, pinho ou lavanda? Quantas barras de sabão eles utilizaram? Quanto tempo levaram para isso? O estúdio foi utilizado novamente, depois do filme? Não ficou fedido para sempre?
Deixando essas infindáveis questões de lado, porque de fato não têm resposta, resta dizer que "Os Pássaros" é um filme com personagens sortudos, mas preguiçosos. Sortudos porque não viveram na história de Twister, onde sua casa de madeira seria levada pelo furacão, e porque se vivessem n'O Inferno de Dante a casa seria engolida pela lava e cairia sobre eles. N'Os Três Porquinhos eles seriam comida de lobo mau. Todo o motivo da morte deles é sua preguiça. Sua incomparável e inquietante preguiça.
Isso porque, sabe-se, eles moravam numa casa de madeira, e casas de madeira - habitação típica dos preguiçosos, assim como as de palha - não são seguras contra corvos e gaivotas revoltados. Um único lobo mau, é sempre útil lembrar, apenas com o sopro, foi capaz de derrubar a casa de madeira do porquinho do meio (que foi obrigado a fugir para a casa de tijolos de seu irmão trabalhador), e, é óbvio, milhares de pássaros revoltados são mais fortes que um único lobo mau, e, mais óbvio, nunca se sabe quando os pássaros vão atacar nossas casas, o que significa que devemos estar sempre alerta, atentos e preparados, como num Estado de Sítio.
Minha casa já tem proteção contra aves revoltadas sem motivo, porque duas vezes fui atacado por gansos gigantes devoradores de homens apenas por passar em frente a eles. Então corria até minha casa feita de tijolos, em cujas paredes elas batiam e acabavam por quebrar o bico e voltar chorando pros seus ninhos. A grande lição do filme é semelhante à dos três porquinhos: "casas de alvenaria são mais seguras que as de madeira", ou algo assim.
Algo estranho no filme é a reação ignorante de quem assiste: "por que os pássaros atacaram?", perguntam enquanto se entreolham de forma a exibir ao máximo sua tão esplêndida capacidade de questionamento filosófico, "o que o homem fez à natureza, ela está revidando?", continuam, em linguagem um tanto trincada, "é a revolta do mundo contra seu explorador vil" é a resposta a que sempre chegam. Invariavelmente.
Devo afirmar que essas pessoas simplesmente não entendem nada de psicologia ornitológica e que eu sei o motivo para eles atacarem. Revelarei em primeira mão. Os pássaros atacaram porque são maus, gostam de arrancar os olhos dos humanos. Isso é lazer para eles, como é para as focas equilibrar a bola na ponta nariz. Não aconteceria nada de ruim se o filme se chamasse "As Focas" e, inclusive, seria um filme muito mais divertido, com cornetas e equilíbrio de bolas no nariz. O mau gosto de Hitchcock fica patente na escolha de pássaros para o elenco do filme, portanto.
Presumo, entretanto, que, elaborando ainda mais a história d'As Focas, os pássaros acabariam atacando por ciúmes. E seria muito mais fácil para eles atacarem, já que o hábitat natural das focas tem teto de lona. Talvez, afinal, não tenha sido o mau gosto de Hitchcock que o tenha feito filmar sobre pássaros, mas o amor pelas focas, animais muito fofos, que sofreriam com as bicadas insensatas e enciumadas de gaivotas e corvos barulhentos. Talvez a real mensagem que Hitchcock passa com o filme seja "as focas são mais importantes para mim que os humanos. Eu as quero vivas, eu os quero mortos". É uma bela mensagem, que pode inclusive redimir o roteiro de segunda do filme e fazer-nos perdoar o mal que ele faz aos nossos ouvidos.

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