sábado, 24 de março de 2007

"Junk Food" por Alan Luna


Como comida que faz mal, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante é um filme pesado e de difícil digestão. Mas o sabor é irresistível


O cineasta britânico Peter Greenaway é também artista plástico. Referir-se a esse dado biográfico do diretor é fundamental para analisarmos seus filmes, sobretudo O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989). Aqui, Greenaway filma como quem pinta um quadro. E mais justo seria começar essa resenha dizendo que o artista plástico britânico Peter Greenaway é também cineasta.

Não é por acaso, portanto, que a direção de arte tem um papel fundamental nessa história, como talvez poucas vezes no cinema. As cores são usadas para realçar sentimentos e sugerir sensações. Com elas dialoga o figurino de Jean Paul Gaultier, que também muda ao sabor dos ambientes.

A direção de arte, entretanto, não é a único atrativo neste filme. Ao contrário: trata-se de uma obra profundamente verborrágica, promíscua, intertextual. E sua grandiloqüência visual não é um recurso para anuviar a falta do que dizer, como costuma acontecer no cinema comercial. Ela é, antes, um recurso expressivo poderoso. É como se Greenaway gritasse sua história, ao invés de simplesmente contá-la.

Ainda no âmbito formal, é interessante notar a direção de atores, que prima por uma atuação muitas vezes teatralizada. Isso parece condizer com o cenário, que igualmente remete ao universo do teatro, inclusive com o uso de cortinas para abrir e fechar o filme, todo ele rodado em estúdio. Com tal artifício, Greenaway antecipou em alguns anos a experiência bem sucedida de Lars Von Trier em Dogville (2003). O uso não muito abundante de cortes (que talvez sejam a característica principal do fazer cinematográfica) também estreita esse diálogo com as artes cênicas.

Outro é elemento importante nessa obra é a música. O personagem do garoto que canta na cozinha do restaurante pontua muitos momentos do filme, dando-lhe um ar de musical ou, para ser ainda mais exato, de ópera. E isso não porque um dos protagonistas, Albert Spica (Michael Gambon), parece muitíssimo com o tenor Luciano Pavarotti, mas pela intensa trilha sonora de Michael Nyman.

Tamanho esmero formal resulta num invólucro nada ordinário para um conteúdo não menos ortodoxo. O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante é um filme forte, escatológico e recheado de metáforas. Basta ver, por exemplo, a pouco convencional associação entre comida e sexo que o diretor estabelece. Para Greenaway, tudo se resume a essas duas necessidades fisiológicas básicas do ser humano, que estão em constante processo dialético: uma permanentemente influenciando ou sendo influenciada pela outra. Bons exemplos nesse sentido são a cena de abertura ou a forma como se dá a morte do livreiro. Mas a síntese perfeita dos elementos do filme — do seu tom, da sua idéia, da sua “mensagem” — está mesmo na cena final, quando um desfecho de triângulo amoroso carregado de simbologia vai unir de forma inacreditável O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante.

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