terça-feira, 20 de março de 2007

"La Jetée" por Paulo Carvalho


Quando pela primeira vez assisti ao filme La Jetée (1962) algumas imagens e passagens da fala pausada e tranqüila do narrador foram perdidas. A despeito da minha pouca atenção, o curta realizado pelo cineasta francês Chris Marker deixou a impressão de que acabara de assistir a uma dessas obras que nos arrematam por sua atmosfera.
A história de um homem marcado por uma imagem da infância. Todo o filme está envolvido por algum elemento etéreo, um leitmotiv desprendido, mas determinante, condutor. Esse motivo, esse ritornelo, essa frase musical recursiva e desconcertante é a memória. A ficção de Marker - Paris destruída por uma hecatombe, as experiências científicas, a viagem no tempo - é sobrepujada pelo riff da memória.
Nada distingue as lembranças de outros momentos, só mais tarde eles fazem reconhecer por suas cicatrizes. La Jetée é uma ficção científica narrada por meio de fotografias. Talvez isso explique, para além do seu belo texto, porque a memória torna-se tão incensante. Um dia feliz, mas diferente. Um rosto de felicidade, mas diferente. O ali-esteve dos frames paralisados remete-me irremediavelmente a diferenciação que a lembrança ou a projeção produzem. Acompanho o personagem em sua viagem, mas sou remetido a outros caminhos. Outros testemunhos auto-diferenciáveis, como o tempo.
Ele compreendeu que não poderia escapar do tempo. E que esse momento que o obcecara era o momento da própria morte. A poética de Marker lembra-me que o cinema é memória, lembra-me também que o movimento está para além da ação. Algumas obras fizeram o cinema servir a uma tese, outras fizeram teses servir ao cinema. La Jetée é seguramente desse segundo grupo porque lança muitas questões utilizando os elementos de sua própria expressão.
Essa imagem, única imagem de paz a chegar ao tempo de guerra. Baudrillard, que também é fotógrafo, afirma que o fascínio de uma fotografia, o elemento mágico de uma fotografia, é que ela consegue preservar o não-ser das coisas, a ausência das coisas, a morte do objeto. Expulso a morte - e elimino a magia - de uma obra quando a interpreto, quando a saturo com toda espécie de significação e interpretação, transformando-a refém de seu próprio conteúdo. La Jetée - suas imagens, sua melodia, seu ritmo - não está para ser decifrado, mas vivido como uma experiência de tempo; como a audição de uma frase que me traz de volta notas e ritmos conhecidos, mas transformados, contaminados de um novo presente; como um passeio pela minha memória.

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