terça-feira, 20 de março de 2007

"Entre mitos e desejos" por Rafaela Vasconcellos



Apesar de ser considerado um filme de terror, A companhia dos Lobos (1984) transita mais entre os universos do lúdico e do trash. Talvez, não de forma proposital, mas, os efeitos especiais, vistos mais de 20 anos depois, soam, no mínimo, toscos. Numa espécie de releitura, ou melhor, paródia do conto do Chapeuzinho Vermelho, com elementos da lenda do lobisomem, Neil Jordan permite, apesar da bizarrice aparente, uma curiosa análise sobre o despertar da sexualidade.
Em sua narrativa multilinear, que, a princípio, consiste num sonho, mas acaba se desdobrando em histórias contadas pela protagonista e por sua avó, desejos e convenções já pré-estabelecidas chocam-se. Freud, até o início dos anos 20, já apontava que o ser humano era uma “máquina de desejo” – ainda que puramente inconsciente –, e mais, uma criatura em constante conflito. Afinal, a partir do momento que o indivíduo se insere numa cultura, valores são incutidos vorazmente no seu psiquismo e determina sua consciência moral. Nesse sentido, além de retratar a descoberta de que o sexo não está só em si mesmo, mas num objeto/ ser externo, o filme sugere os atritos latentes entre indivíduo e sociedade, ou mesmo entre gerações.
Simone de Beauvoir em “O segundo sexo”, diz que a inquietação virginal não se traduz por uma necessidade precisa: a virgem não sabe exatamente o que quer. Nela, sobrevive o erotismo agressivo da infância; seus primeiros impulsos foram preensivos e ela ainda tem o desejo de abraçar, de possuir. E se a sexualidade não é um campo isolado, prolonga os sonhos e as alegrias da sensualidade, então, o fato de toda a trama se desenrolar num sonho da garota é simbólico. A própria figura do Lobo Mau, que, numa leitura psicanalítica, por vezes, representa todas armadilhas e perigos da vida, aqui, surge, também, como símbolo da descoberta sexual, ou seria melhor dizer erotismo?
Bem, interpretações sexológicas à parte, o fato é que a imagem da “fera” surge, ainda, como metáfora para a questão da (des)confiança, do fato de o parecer, nem sempre, ser. A jovem, com uma postura que ora beira a ingenuidade, ora a ousadia, tem um sentimento inverso ao comum: aquilo que, nos outros, provoca medo, nela, causa atração; também vai de encontro a uma certa fuga, ou melhor, desconcerto com relação ao prazer, presente nos discursos dos mais velhos. O que seria aquela figura da avó, senão uma alegoria para valores moralistas, tradicionais (superego de Freud?) que lida sempre com uma visão maniqueísta, ou pior, quase sempre demoníaca, com relação aos anseios/ desejos (Id) da neta?
Numa visão um tanto fatalista, Jordan resgata a idéia de que o mundo real pode ser muito mais cruel do que se imagina ou deseja. E que a passagem da infância para a vida adulta é dolorosa, ou por vezes, traumática. Em seu realismo-mágico, cheio de simbolismos, o final feliz de conto de fadas parece existir, apenas, nos sonhos e nas fantasias, ao passo que a força da realidade acaba por surpreender num simples despertar. Cedo ou tarde.




REFERÊNCIA

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 501 p.

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