sábado, 24 de março de 2007

"Duplicidade de vidas" por Cecília Almeida


Sempre há momentos em que se acorda no meio da noite, talvez depois de um pesadelo, com a sensação de que se está terrivelmente só. Momentos em que os piores anseios aparecem sem justificativa, sem convite, sem precedentes. Quase como se estivéssemos sentindo a mágoa de uma outra pessoa. De um estranho, que poderia habitar qualquer lugar do mundo, falar qualquer língua e ter experiências de vida totalmente diferente das nossas. De alguém que, apesar de existir de maneira independente, compartilha conosco algo que vai além da matéria. Alguém que se pode sentir através do espaço e com quem, de uma maneira inexplicável, se pode aprender. Uma segunda versão de nós mesmos, uma segunda vida.
Weronika, em Praga, era o esboço. Traz na mão a cicatriz de quando encostou a mão perto do forno, e se queimou. Amante da música, ela começou a cantar em concertos sem muito treinamento, ignorando o coração doente. Véronique, em Paris, é professora de música clássica e sempre soube o que tinha de fazer sem que ninguém a dissesse. Sempre soube que não se deve colocar a mão perto do forno e intuiu naturalmente que deveria ir ao cardiologista. Desistiu das aulas de canto sem dar uma razão plausível ao seu professor, no dia seguinte à morte de Weronika. Ambas sempre sentiram as vidas uma da outra e dividiam pequenos hábitos, pequenas manias, pequenas paixões. Mas, se uma era o prelúdio da outra, a primeira precisou morrer para a segunda aprender a continuar vivendo.
“A Dupla Vida de Véronique” (1991), de Krystof Kieslowski, é uma fábula. Uma fábula que traz a graciosa Irène Jacob (A Fraternidade é Vermelha) encarnando essas duas mulheres que se pressentem em tudo o que fazem. Um filme denso, de grande peso psicológico, que deixa muito o que pensar – e sentir. A idéia de que há outra pessoa no mundo que compartilha nossos mesmos sonhos, desejos e sentimentos atinge algumas das questões mais ontológicas do ser humano. Só que Kieslowski faz isso de maneira extremamente sutil e meticulosa, e isso faz com que o filme pareça um verdadeiro exemplo de nonsense aos olhares pouco sensíveis e atentos. São os detalhes pequenos, em planos de fundo, que dão as dicas para juntar as peças do filme. Por isso, os acostumados com a estética cinematográfica mainstream, de fácil digestão, poderão tomar “A Dupla Vida” por um filme confuso. Com certo desprendimento emocional e mental, entretanto, qualquer um pode perceber a lógica da película. É um exercício de introspecção que vai longe, para além do filme e para dentro do espectador.
De certa forma, “A Dupla Vida de Véronique” inaugura um formato que Kieslowski iria aprimorar na sua magistral Trilogia das Cores. “A Fraternidade é Vermelha” (1994), que repete a atriz Irène Jacob, também brinca com as pequenas coincidências e conexões que os seres humanos compartilham através do tempo e espaço. O primeiro, entretanto, deixa mais pontas soltas, ou seja, é mais aberto à interpretação. Embora isso possa dar a impressão de que a obra é um tanto prematura, é isso que a torna mais intimista, mais subjetiva.
Essas pontas soltas podem resultar em inúmeros nós diferentes, dependendo da visão de quem assiste. Alguns podem achar que as duas mulheres estavam realmente conectadas, enquanto outros preferem acreditar em coincidências. Kieslowski não dá certezas, mas coloca em cena os elementos necessários para que o espectador tire suas próprias conclusões. Não é de se admirar que não haja uma solução definitiva para o filme. Pois Weronika e Véronique representam a angústia de todos os seres humanos que já se perguntaram um dia se estavam sozinhos. E que continuaram sem resposta.

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