terça-feira, 20 de março de 2007

"Falar de Jacques Tati, o ator, o diretor, o pantomímico, o comediante." por João Lucas


Rir é a sensação mais desejada pelo homem, é como a sensação de poder soltar as pedras que foram acumuladas na cabeça nos dias que se passaram. O homem, pelo menos no momento que ri, pode tudo e nega tudo ao mesmo tempo. É a transparência de um sentimento direto e instantâneo que a humanidade precisa ter e cuidar tanto quanto as batidas do coração – fisicamente falando mesmo. O riso é a expressão desejada, é soltar as pedras no chão, ficar muito leve e ir subindo e ouvindo as pedras caindo lá em baixo.

E Jacques Tati deixa as pedras caírem silenciosamente, em seus filmes você até as sente caindo, mas não ouvi barulho nenhum. Tati proporciona um riso intenso e suave, que distrai com muita atenção. E você percebe que não é exatamente humorístico, não é um riso gratuito ou caricato. Ele sensibiliza através de detalhes delicados e com uma ironia sutil que pouco se viu em filmes do gênero comedia. E será mesmo que os filmes de Tati fazem parte desse gênero? Podo se dizer que sim, mas uma vez, quando eu assistia o filme, umas das pessoas que estava vendo junto comigo falou, “Esse filme num era de comedia? Porque não vi ninguém rindo até agora...”.

E se pode mesmo dizer que os filmes de Jacques Tati não são engraçados, para muita gente eles não devem ser mesmo. Mas a sua intenção não é meramente rir, e se fosse, mesmo assim ele também seria grandioso. Só que Tati tem várias intenções nos risos que proporciona. Você começa com aquele riso tímido, com o canto da boca e ainda em silencio, é comum dizer rir por dentro. Aí vai aumentando aos poucos e você começa a rir com um pouco mais de desembaraço, até que então você termina de ver o filme inteiro sem tirar o sorriso dos lábios. E não são as gargalhadas que o fazem ficar com a boca dormente, é que Tati não deixa você tirar o sorriso da boca, você rir intensamente e vagarosamente até acabar a película.

Tati não é de se estourar de rir ou soltar altas gargalhadas, é um riso mais pessoal, que surge de outra forma, instigado por um outro contexto. E, por ser pessoal, é possível gargalhar, cada um escolhe a forma que ri. Então pronto, Tati é comédia mesmo, ele diverte, faz rir, igual a todos os comediantes. Porém, o seu cinema é mais profundo dentro desse estilo de filme. Tati praticamente criou um novo subgênero humorístico. É claro que se vê muito de Buster Keaton ou Chaplin em seus filmes, mas existem diferenças terminantes nos risos cometidos em quem assiste a qualquer um deles. Chaplin é a essência do riso, o riso puro provocado por um palhaço moderno, sem maquiagem, mas com a mesma intenção tola. Porém Chaplin sabe de seu riso, ele um herói evidente em comédia, aquele que sofre, mas no fim tudo dá certo. Ele dança, ele brinca, ele é diretamente engraçado. Keaton é o riso ridículo, aquele que as pessoas acabam rindo dele e não do que ele faz, ele se submete muito mais que os outros, ele pode ser um frouxo ou um fraco. Ele não tem muita esperança, é mais sério. Chaplin provoca esperança, embora também seja sério.

E Jacques Tati? Tati consegue suscitar esperança mesmo sendo atrapalhado. E ele não é um herói esperto, é um herói que sofre, comove e convence que suas naturalidades funcionam, elas acabam por serem desejadas por nós. Tati consegue ser sério apenas quando precisa, ele não quer dar esperança, embora motive tal sentimento. É como se ele fosse uma espécie de anti-herói humorístico, aquele que a gente torce a favor, lamenta seus infortúnios, mas ele continua fazendo errado, e mesmo assim conquista a nosso simpatia. Mesmo o vendo perder nós ficamos felizes.

Ah sim, falando historicamente... Jacques Tati começou sua carreira artística como mímico de esportes, ou, pantomímico. Ele se apresentava em casas de espetáculo na França quando jovem. Por seu físico e talento para esportista, Tati imitava em suas apresentação vários tipos de esportistas, como um boxeador, jogador de rúgbi, tenista e jogador de futebol. Então foi por esse caminho que ele se arriscou no cinema e o seu primeiro filme foi o curta-metragem “Oscar, champion de tennis”, de 1932, no filme ele fazia exatamente o que sabia fazer nos espetáculos teatrais. Depois desse, Tati fez vários outros filmes como ator até dirigir seu primeiro curta, “Gai Dimanche” em 1936. O primeiro longa que dirigiu e atuou foi “Jour de fète” que no Brasil se tornou “Carrossel da esperança”. Tanto esse filme, que foi feito em 1948, como os outros curtas que Tati atuou ou dirigiu até então, já indicavam como o seu estilo de comedia seria. São filmes com um roteiro meticuloso, porém com pouquíssimos diálogos, o personagem de Tati não fala quase nada e os outros personagens também não falam muito. Os filmes questionam muito a sociedade contemporânea, explorando seus percalços e limites. As figuras principais são geralmente trabalhadores desafortunados que aturam silenciosamente as dificuldades de trabalho da burguesia como se fossem peças desencaixadas na maquina da sociedade, porém peças que funcionam “bem” do seu próprio jeito. E assim, aos poucos vai aparecendo aquele que seria a maior criação de Tati, o personagem Monsieur Hulot.

Em 1953, Tati produz, dirige, escreve e atua seu primeiro grande filme, “Les Vacances de Monsieur Hulot” (ou “As Férias do Senhor Hulot”). Essa é a primeira aparição do personagem Hulot, um senhor de meia-idade que praticamente só pronuncia o seu próprio nome. E o filme não é a historia apenas do personagem de Tati, são vários atores que contracenam e que tem quase o mesmo tempo de exposição do protagonista – e isso é igual também nos outros filmes de Hulot. O filme é uma comunhão de cenas desordenas sobre um típico verão da burguesia francesa. Hulot se hospeda num pequeno hotel onde praticamente todas as pessoas fingem se divertir e descansar da correria e dos problemas da cidade, ele é o único que não está preocupado com nada e com isso acaba sendo uma figura indesejada pela maioria dos hóspedes do hotel. O filme não tem uma historia definida, são cenas que se desenvolvem descontinuamente. E são os momentos, imagens e gestos que interessam a Tati e não a construção linear de uma trama, esse é outro ponto marcante em seus filmes.

É a partir de “Les Vacances de Monsieur Hulot” que Tati ganha grande notoriedade. Seu alter-ego Hulot é um personagem cativante que interage com um meio ridículo e ele não é necessariamente ridículo, embora provoque situações embaraçosas. Aí aparece outra grande marca no humor de Tati, as reações dos hospedes do hotel às confusões geradas por Hulot são mais engraçadas que as próprias bobagens do protagonista.

Então, o humor em si sempre brincou com a ingenuidade e a besteira, mas Monsieur Hulot não é só isso, a sua inocência é um jeito de lidar com as coisas do dia a dia e com o relacionamento com as pessoas com simplicidade. Hulot é um senhor francês que não é bem exatamente atrapalhado, mas provoca algumas trapalhadas de vez em quando. Ele incomoda algumas pessoas, exatamente por fazer o não convencional, por não ser um burguês recém abastado, por preferir ouvir música a ouvir as noticias do dia da cidade, por ser simpático e por brincar com as crianças, embora não seja definitivamente um humor infantil.

E é sobre um olhar infantil que Tati faz seu próximo e mais famoso filme, “Mon Oncle” (“Meu Tio”). O filme, feito em 1958 é o que tem mais historia entre os filmes de Tati – embora também não tenha um enredo necessariamente elaborado. Hulot agora está desempregado e tem o simples dever de trazer seu sobrinho da escola. O pai da criança é seu cunhado e tem certa impaciência com Hulot, mas mesmo assim consegue arrumar um emprego para ele na fabrica em que é o gerente e etc.etc...

Esse é o filme mais lírico de Tati, também o mais bem realizado. Dizia-se que em “Les Vacances...” faltava mais linearidade e acabamento nas cenas, aqui Tati é impecável. Tati faz um filme mais simples e bem desenvolvido e mesmo assim não perde o mesmo tom irônico e espirituoso. “Mon Oncle” também satiriza a burguesia e seus vícios pela parte mais banal da tecnologia da modernidade. E Hulot novamente quebra com tudo, em todos sentidos possíveis... no filme, os detalhes são de um capricho incrível, não importa se são cachorros, adultos ou crianças encenando, tudo é muito minucioso e muito bem feito. As cenas parecem que foram feitas com muita sorte, é tudo muito perfeitamente ensaiado. E foi com esse filme que Tati ganhou o prêmio do júri no festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro em Hollywood. E a partir já era considerado um dos maiores comediantes do cinema, além de ter erguido o até então inexpressivo “humor francês”.

Oito anos depois de “Mon Oncle”, Tati faz sua maior obra, “Playtime” (o titulo brasileiro é “Tempo de Diversão”). O filme tem uma produção gigantesca, Tati teve que penhorar sua casa para cobrir o orçamento. Ele construiu praticamente uma cidade inteira, com ruas, prédios e até um aeroporto. E esse é o filme mais “sério” de todos seus filmes, são poucas as ações do filme, nos primeiros 20 minutos sempre se têm a impressão que vai acontecer alguma coisa. Porém, na verdade, já estão acontecendo, e aos montes. São planos-seqüência longos e silenciosos e cheios de minúcias. O Hulot é o mesmo Hulot, só que aqui ele está numa grande empresa, no meio da metrópole, uma situação totalmente diferente das anteriores. Mas ele é o mesmo, as mesmas manias, os mesmo trejeitos e a mesma reação provocada. Porém “Playtime” é diferente, é mais comedido. É como se toda a crítica que Tati explorava com menos ênfase em seus filmes anteriores precisasse de mais evidência dessa vez, é um filme menos leve, os outros são mais delicados e divertidos.

Os filmes de Tati sugerem, de certo modo, que tendem a agradar sempre uma minoria da população, a minoria que se identifica ou simpatiza com o Monsieur Hulot. A maioria é exatamente aquela que seu personagem desagrada – embora muita gente goste de rir de si mesmo, então pronto. E isso aparece em todos os filmes, porém em “Playtime” ele é mais direto ainda, Tati deixa claro sua idéia sobre a sociedade, ele mostra que Hulot não é apenas uma figura engraçada, ele sempre fala sério nas entrelinhas. “Playtime” tem um riso mais sério.
E assim é Jacques Tati, seus filmes têm tempos rápidos, várias informações instantâneas que aparecem e simultaneamente nos contagia. Forma-se uma seqüência de pequenos acontecimentos até que num ponto se percebe que tudo faz parte de um grande espetáculo, uma grande obra cheia de detalhes incríveis. Às vezes as coisas parecem confusas nos filmes, mas de fato, quem fica confuso é a gente, pois na verdade tudo no filme é de uma precisão incrível, uma sincronia absurda, tudo é perfeitamente planejado. E tem mesmo que se prestar muita atenção para conceber por inteiro tudo que Jacques Tati pensou para seus filmes. É pra se ver várias vezes e cada vez que assiste você ri de uma coisa que não viu, ou que não entendeu direito. É como num circo, cada movimento na cena é pensado, pelo menos a intenção do movimento. A sincronia é maravilhosamente perfeita. Você não desgruda o olho, fica atento, seus olhos passeiam por todos os cantos da tela, e assim, aos pouquinhos você vai rindo, e ri mais, e continua rindo e não tira o sorriso da boca e continua sorrindo e continua...

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