terça-feira, 20 de março de 2007

"Você não viu nada em Hiroshima. Nada." por Paulo Carvalho


Devo aqui falar sobre um dos filmes precursores da Nouvelle Vague, “Hiroshima meu amor”(1959), o primeiro longa-metragem de Allain Resnais.
Em Hiroshima, um casal de amantes, ela (Emmanuelle Riva) uma atriz francesa e ele (Eiji Okada) um arquiteto japonês, vive um caso de amor intenso e imerso em lembranças. Senti calor na Praça da Paz. Dez mil graus na Praça da Paz. Eu sei. Ela traz a memória do horror da bomba, horror que não “viveu” como ele. Ele “vive” as lembranças do amor dela pelo inimigo alemão durante a guerra, o amor que também emerge apenas como fotografias e explicações. Sobre diálogos precisos e delicados escritos por Marguerite Duras, Resnais cria uma belíssima narrativa sobre o amor, a guerra e a memória.
O movimento indistinto de resgate e atualização é a questão central da película. Através dele fruímos uma nova temporalidade onde o tempo não é vivenciado como um deslocamento espacial e seqüencial. O passado com seu ar congelado e previsível, o presente sempre escorregadio e traiçoeiro, o futuro das projeções e do inesperado. Como aponta Merleau-Ponty, vivemos todas as temporalidades em um mesmo campo. Não há passagem de um ponto a outro, acumulação ou extensão. Da seqüência à simultaneidade. O tempo presente em Merleau-Ponty forma-se pela auto-diferença, pelo estilhaçamento e pela transformação. Hiroshima – Nevers é o eixo intensivo através do qual Resnais articula as memórias do casal. Nele somos confrontados com um tempo matizado pela auto-diferença e pelas lacunas. Resnais coloca a negação do tempo como espaço sob a narrativa de uma viagem extrema - a atriz francesa em visita ao Japão - e sob o mais extremo ícone do século XX – a bomba atômica.
O que nos mostra o filósofo Sérgio Cardoso é que o tempo, como a viagem, não opera no espaço. O tempo tomado por espaço é ele mesmo uma negação do movimento. Está submetido à constituição de uma trajetória, um percurso que contém os pontos da partida e da chegada. Já não se faz possível falar em descontinuidade, temos em mãos apenas uma trajetória, uma unidade espacial total, a diferença cristalizada no todo. Em Hiroshima, meu amor, Resnais denega essa relação através de um aparentes paradoxos: a viagem da atriz francesa ao Japão; o encontro de sua memória com a sua presentificação objetiva e a relação do local-pessoal com o mundial-coletivo destituem a extensão como meio da diferença e reafirmam o caráter intensivo da experiência do tempo, da memória e da alteridade.
Você não viu nada em Hiroshima. São as palavras do arquiteto japonês ao ouvir as lembranças do horror atômico imaginado pela francesa. Elas condensam a tese de Resnais: o amor e a dor dos personagens só podem ser vividos e narrados de uma única maneira, o presente da memória. É nele que se contaminam as diferentes temporalidades e é nele que se manifesta toda consciência. Como nos fala Bergson, a vida se empenha em projetar-nos no futuro, mas para isso tem que conservar espessas camadas de passado. É no liame da antecipação e da lembrança que o presente é tecido, preenchido, mistura indistinta de devir e memória. Assim é também o tempo.

Referências:

BERGSON, H. Cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CARDOSO, Sérgio. O olhar dos viajantes in NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia da Letras, 2003.

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