quarta-feira, 21 de março de 2007

"Hiroshima mon amour" por Edson Alves Jr.


“Como você, eu tenho memória, conheço o esquecimento.”
“Não, você não tem memória.”
“Como você, também tentei lutar com todas as forças contra o esquecimento. Como você, eu esqueci.”

Originalmente, Alan Resnais iria filmar no final da década de 50 um documentário sobre a destruição causada pela bomba atômica em Hiroshima. No entanto, ao começar a preparar o filme, o diretor percebeu que não conseguiria fazer nada além de repetir o seu documentário anterior, Noite e Neblina (1955). Ou, como ele falou ao seu produtor, que chegava a “não ver como fazer um filme melhor que os quinze documentários que você me mostrou para me servir de base”.

Ouso discordar da opinião do próprio Resnais. Não seria um documentário ruim, este filme, se tivesse sido realizado – ao contrário, seria bastante interessante para nós espectadores, ver a discussão sobre História e esquecimento, que ele levanta sobre Auschwitz no filme anterior, ser direcionada para a tragédia da cidade japonesa. Mas não interessava ao diretor apenas fazer um filme que ganhasse alguns prêmios e, com sorte, talvez fosse visto com interesse por alguns estudantes de Cinema e de História nos 50 anos seguintes. O que Alain Resnais queria era trazer algo novo para a sua forma de fazer cinema, expandir os limites da sua expressão na película.

Apesar dessa vontade do diretor, uma série de dificuldades o assombravam. Chirs Marker, diretor de La Jetée (1962) abandonou o projeto logo no início. O roteiro alegórico que Resnais produziu inicialmente não lhe agradou. Não sendo mais um documentário, o filme deveria ter um protagonista japonês e outro protagonista francês, por força da união entre produtores dos dois países. Pressões externas, crise criativa, gente pulando fora do barco: estava pronta a receita para um fracasso.

O resultado disso tudo, porém, foi uma obra prima: Hiroshima Mon Amour (1959). Assim como Casablanca (1942), foi justamente das dificuldades da produção que a genialidade acabou por surgir.

O ponto de virada que tornou isso possível foi quando Resnais conseguiu acertar com os produtores o nome de um roteirista, e chegou a um acordo com o nome da escritora Marguerite Duras. Ainda convencido de que aquele era “um filme impossível”, Alain foi até a casa de Duras para conversar sobre o roteiro. Enquanto tomavam chá, o diretor percebeu que, “mesmo com aviões carregando bombas atômicas dando voltas pelo céu do planeta, nós dois, como muitas outras pessoas, continuavam ali, sem alterar o nosso comportamento externo, bebendo chá ou cerveja”.

Eles perceberam aí o que deviam fazer uma história íntima, que tivesse a bomba apenas como pano de fundo. Usariam também estratégias inovadoras para desenvolver o filme – como uma história subterrânea dos personagens, que não aparece no filme mas é conhecida de roteirista e diretor, ou o uso de um gravação com a leitura do roteiro por Marguerite Duras, que ficou como referência para a direção dos diálogos.

Filmado em Hiroshima e Nevers no segundo semestre de 1958, com uma equipe técnica em parte francesa e japonesa que tinha sérias dificuldades de comunicação (mesmo o ator principal japonês, Eiji Okada, não sabia falar francês, o que o obrigou a decorar as suas falas sílaba por sílaba sem entender bem o que estava falando), Hiroshima Mon Amour ainda tem resquícios do documentário que deveria ter sido na sua parte inicial, em que os corpos entrelaçados de um japonês e de uma francesa se fundem com os planos seqüência de Resnais através da cidade de Hiroshima, passando por hospitais, mercados, pelo museu sobre os ataques atômicos. Tudo isso enquanto a voz do casal, em off, discute se ela realmente viu algo em Hiroshima, questionando se ver resquícios de um horror é significa chegar perto de sentir ou mesmo conceber o que aquele horror representa - “Você não viu nada em Hiroshima”. Como disse o diretor numa entrevista, “Eu pensei que só podíamos imaginar este horror, pois se colocássemos qualquer coisa de real, esse horror desaparecia”.

***

Após o mini-documentário permeado por imagens de corpos entrelaçados, a virada para a intimidade que o roteiro de Duras propôs é traduzido em imagens num plano clássico e genial, em que a câmera sai de uma praça de Hiroshima para enquadrar Emanuelle Rivas, (interpretando uma atriz francesa que está fazendo um “filme sobre a paz”) observando a cidade, acompanhado-a até o quarto do hotel, onde a espera o arquiteto japonês que agora é o seu amante. A partir daí começa a história íntima que é a mais importante para o filme: dois amantes, casados com outros, que só têm mais um dia para ficar juntos e tentar aproveitar o seu amor impossível.

Um pequeno gesto que o amante japonês faz com as mãos detona na atriz uma série de lembranças da sua cidade natal, Nevers, das quais ela inicialmente tenta escapar dizendo simplesmente que “já foi jovem e já foi louca em Nevers”. No decorrer desse dia ela decide dividir com o japonês a sua tragédia pessoal: se apaixonar por um soldado alemão na França ocupada, que foi morto no dia da libertação da França. Essa história é contada em um flashback que não é cronológico, mas segue a consciência da protagonista, num estilo fragmentário que se tornou um marco no cinema de então. Na medida em que ela se entrega ao amor passageiro e impossível do japonês, surge a lembrança do antigo amor que ficou morto sob os seus braços em Nevers.

É desse jeito que percebemos que o amor dela estava na contramão da história, e na loucura que segue a morte do seu amante que percebemos a enorme dor daqueles cuja subjetividade tem de ser escorraçada pela guerra . Ela finalmente se deixa lembrar que ficou horas abraçada com o amante morto, que ficou dias como louca numa adega fria, que não quis cometer a heresia de esquecer o amor que morreu, e que se entregou à loucura por causa disso. E ao mesmo tempo ela percebe que o arquiteto japonês quer que ela fique no Japão, pelo menos mais algum tempo, para que aquilo tudo não durasse apenas um dia.

É neste momento que o texto de Duras faz surgir aquilo que é o grande tema do filme: a consciência do esquecimento. A personagem de Rivas, se consegue sair da sua loucura e de Nevers para refazer a vida em Paris, é porque percebe que já começou a esquecer os detalhes do soldado alemão que amou - “o esquecimento começa pelos olhos, depois a sua voz será esquecida, depois abrangerá você inteiro, pouco a pouco você se tornará uma canção”. No entanto, ela percebe que esqueceu, com toda a dor que isso acarreta.

Marguerite Duras chegou a dizer certa vez que Hiroshima Mon Amour foi o seu “fracasso como roteirista”, pois “você não vê nada de Hiroshima, que é o início do filme”. A declaração dela só reforça a tese de Zadie Smith de que as grandes obras sempre são fracassos para os seus realizadores. Pois se fracassou em tornar Hiroshima uma presença constante em todo o filme como foi no início, Duras conseguiu conciliar de uma forma genial a história de um amor impossível no Japão (que evoca tanto Casablanca que o filme de Michael Curtiz chega ser citado numa cena) com a lembrança de um amor passado na França. Ao final, não faz questão sequer de definir se os dois amantes irão ficar juntos ou não, mas simplesmente dá nomes a eles: Ele é Hiroshima, ela é Nevers. Os personagens se tornam as cidades que são sedes de suas lembranças, do que sentiram, e também do que esqueceram.

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