Eu queria muito, Veronique.
Eu queria muito, Weronica.
Mas ninguém veio dançar, ninguém
e tive que dançar só
(...)
Pensei que era impossível escrever algo sobre A dupla vida de Veronique. Primeiro, porque a proposta de Kielowski é captar o insondável. Gestos, pequenos sussurros, olhares em ângulos sorrateiros, encontros com espectador nenhum.
Acho que comecei a imaginar em escrever algo quando o tempo escureceu e reencontrei dentro de mim as pessoas que nunca fui. Elas eram muito diferentes de um personagem que procura ele mesmo o seu criador. Elas, as pessoas que nunca fui, habitavam meu corpo com uma mobilidade, uma vaguidão sem igual. Eram uns transeuntes de mim, uns flaneurs da minha internalidade...
Penso: o pai de Veronique era carpinteiro e o amante era fazedor de marionetes. Ela então era uma títere de madeira? Não creio. Ela era um sopro de Kielowski da mesma forma que as pessoas que nunca fui são um sopros de mim.
E na verdade, há muitos sopros, embora Kielowski só tenha criado duas Veroniques, imagino que existem mais do que as duas porque o instante mesmo da criação redimensiona as possibilidades de intervenção sobre o tempo e o espaço. Por exemplo, quando eu digo uma palavra, ela mesma se exala: ganha cheiro, ela mesma se fricciona: ganha textura, ela mesma se contrói: ganha forma, ela mesma se vê: ganha perceptibilidade. Digo merda: me melo, melo a pessoa à minha frente, melo toda a parede ao meu redor. Acessibilizo a possibilidade de alguém se melar e se deliciar com as palavras que digo. Assim, no cinema, acredito que quando Kielowski cria Veronique e Weronica permite o acesso à nós, seus espectadores, à nossa alteridade: à todas as pessoas que nunca fomos, embora saibamos, instrospectivamente, que elas nos habitam.
Quando ando pelos espaços internos que me compõem, encontro um menino que se perdeu há muitos anos dentro de uma selva, um ecologista inveterado que estuda a especificidade das samambaias, uma puta magnífica que transa alucinadamente para trazer amor à humanidade, um professor aparamentado que ensina aos alunos com os óculos na ponta do nariz, um burguesinho que segura uma cerveja, um péssimo surfista...
Da mesma forma, existe uma marca (uma igual àquela dos dedos de Veronique e Weronica) que sinaliza a presença dessas pessoas em nós. Essa cicatriz são as dores, os amores ou a ignorância completa que temos de nossa própria existência. Por amar a vida, criamos pessoas novas dentro de nós, por detestá-la também e por ignorá-la deixamos que ela mesma nos invada e risque, de alguma forma, um traço que mais cedo ou mais tarde irá criar uma pessoa que nunca seremos. Veronique em suas duas vidas foi especialista em abraçar, ignorar ou detestar a existência, seja através da mentira, do amor, da tristeza, da decepção ou da vaguidão.
A descoberta dessa pessoa não é tão difícil, mas requer um certo apurado no olhar. Porque se ao final do filme de Kielowski é o mestre de marionetes quem revela a Verônique a existência de Weronica, o espectador ele mesmo já teve acesso durante o desenrolar da história aos momentos de alteridade (quando Verônica criava Weronique e quando Weronique criava Verônica). Tudo que é delicado em A dupla vida de Veronique - os atos, as pequenas palavras, piscadelas, as pequenas obscenidades, os pequenos gestos criam no telespectador a descoberta feliz da própria marca, da própria brasa e do próprio dedo, antes, durante e depois do encontro desses três. Na imersão dessa descoberta, só resta cantar, belissimamente, convocando, dentro de nós as pessoas que nunca fomos e assim, após integrarmos tudo em um mavioso canto, despedirmo-nos rapidamente dessa vida mergulhando uma última vez no imenso espaço que se compõe conosco.
Eu queria muito, Weronica.
Mas ninguém veio dançar, ninguém
e tive que dançar só
(...)
Pensei que era impossível escrever algo sobre A dupla vida de Veronique. Primeiro, porque a proposta de Kielowski é captar o insondável. Gestos, pequenos sussurros, olhares em ângulos sorrateiros, encontros com espectador nenhum.
Acho que comecei a imaginar em escrever algo quando o tempo escureceu e reencontrei dentro de mim as pessoas que nunca fui. Elas eram muito diferentes de um personagem que procura ele mesmo o seu criador. Elas, as pessoas que nunca fui, habitavam meu corpo com uma mobilidade, uma vaguidão sem igual. Eram uns transeuntes de mim, uns flaneurs da minha internalidade...
Penso: o pai de Veronique era carpinteiro e o amante era fazedor de marionetes. Ela então era uma títere de madeira? Não creio. Ela era um sopro de Kielowski da mesma forma que as pessoas que nunca fui são um sopros de mim.
E na verdade, há muitos sopros, embora Kielowski só tenha criado duas Veroniques, imagino que existem mais do que as duas porque o instante mesmo da criação redimensiona as possibilidades de intervenção sobre o tempo e o espaço. Por exemplo, quando eu digo uma palavra, ela mesma se exala: ganha cheiro, ela mesma se fricciona: ganha textura, ela mesma se contrói: ganha forma, ela mesma se vê: ganha perceptibilidade. Digo merda: me melo, melo a pessoa à minha frente, melo toda a parede ao meu redor. Acessibilizo a possibilidade de alguém se melar e se deliciar com as palavras que digo. Assim, no cinema, acredito que quando Kielowski cria Veronique e Weronica permite o acesso à nós, seus espectadores, à nossa alteridade: à todas as pessoas que nunca fomos, embora saibamos, instrospectivamente, que elas nos habitam.
Quando ando pelos espaços internos que me compõem, encontro um menino que se perdeu há muitos anos dentro de uma selva, um ecologista inveterado que estuda a especificidade das samambaias, uma puta magnífica que transa alucinadamente para trazer amor à humanidade, um professor aparamentado que ensina aos alunos com os óculos na ponta do nariz, um burguesinho que segura uma cerveja, um péssimo surfista...
Da mesma forma, existe uma marca (uma igual àquela dos dedos de Veronique e Weronica) que sinaliza a presença dessas pessoas em nós. Essa cicatriz são as dores, os amores ou a ignorância completa que temos de nossa própria existência. Por amar a vida, criamos pessoas novas dentro de nós, por detestá-la também e por ignorá-la deixamos que ela mesma nos invada e risque, de alguma forma, um traço que mais cedo ou mais tarde irá criar uma pessoa que nunca seremos. Veronique em suas duas vidas foi especialista em abraçar, ignorar ou detestar a existência, seja através da mentira, do amor, da tristeza, da decepção ou da vaguidão.
A descoberta dessa pessoa não é tão difícil, mas requer um certo apurado no olhar. Porque se ao final do filme de Kielowski é o mestre de marionetes quem revela a Verônique a existência de Weronica, o espectador ele mesmo já teve acesso durante o desenrolar da história aos momentos de alteridade (quando Verônica criava Weronique e quando Weronique criava Verônica). Tudo que é delicado em A dupla vida de Veronique - os atos, as pequenas palavras, piscadelas, as pequenas obscenidades, os pequenos gestos criam no telespectador a descoberta feliz da própria marca, da própria brasa e do próprio dedo, antes, durante e depois do encontro desses três. Na imersão dessa descoberta, só resta cantar, belissimamente, convocando, dentro de nós as pessoas que nunca fomos e assim, após integrarmos tudo em um mavioso canto, despedirmo-nos rapidamente dessa vida mergulhando uma última vez no imenso espaço que se compõe conosco.
Linda crítica. O mais belo nela é o seu toque confessional de pessoalidade. Acho fascinante quando a crítica deixa seu papel universal e passa a ser tão subjetiva, tão sua. Você se torna uma das vozes ocultas minhas, pessoas que eu nunca fui.
ResponderExcluirObrigada.