sábado, 24 de março de 2007

"Bon Appétit" por Cecília Almeida


E se todo o universo coubesse num restaurante? Os dias seriam medidos de acordo com os pratos especiais no cardápio, o governante seria o gerente e o grande criador seria o cozinheiro. Cada ambiente físico representaria a hierarquia entre os vários estados de espírito e energia humanos, desde o bem até o mal. No estacionamento, maldade e bondade se misturam nos tons de azul escuro do mundo real. Na cozinha, as tentações em forma de comida – e sexo – surgem em meio à neblina esverdeada, num purgatório em que humanos cometem seus pecados mais bem intencionados e pagam por eles. Na sala de jantar, o inferno. A crueldade transpira em vermelho, e todos podem ser vítimas da tirania caprichosa de um diabo. O paraíso, onde ele não tem permissão para entrar, só poderia ser o banheiro feminino: branco, perfeitamente limpo e iluminado. Os anjos cantariam diariamente, através de uma criança, rogando pela purificação dos homens – e deles mesmos. Somente uma coisa poderia perturbar o funcionamento e a ordem desse universo: um homem, com a intenção nobre de salvar a esposa do diabo de seu cárcere conjugal. Homem que vem do mundo, onde o bem e o mal andam juntos, e se torna amante da mulher de bom gosto e inteligência, que sofre nas mãos do marido e só encontra paz longe dele. Bem, é lógico que o universo não cabe num restaurante, mas a metáfora serve bem para “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” (1989), de Peter Greenaway.
No cardápio, a deliciosa comida de Richard Borst, o Cozinheiro, e os abusos diários de Albert Spica, o Ladrão e gerente da casa. Entre Deus e o diabo, Georgina Spica, a Mulher, e Michael, seu Amante, se esgueiram na cozinha para se amarem em silêncio. A trama segue mostrando o dia-a-dia desses personagens e seu comportamento à mesa na hora do jantar. Ao final de cada noite, Albert Spica tempera o ambiente com um de seus surtos violentos – perfeitamente esquecidos no dia seguinte, quando tudo já voltou ao normal. Com isso, a obra ganha seu ritmo descompassado, às vezes lento e às vezes frenético, entoado por uma trilha sonora perturbadora e igualmente repetitiva.
A preocupação com a estética pode ser percebida desde os primeiros minutos. Cada detalhe, cada diálogo, cada objeto de cena. Tudo está colocado numa harmonia digna de quem sofre de um transtorno obsessivo compulsivo agravado. Cada cena parece uma pintura, um quadro bizarro meticulosamente pintado com cores fortes e chamativas. Nenhuma delas, entretanto, é usada por acaso: todas compõem, em conjunto, a atmosfera do restaurante onde praticamente todo o filme se desenrola.
A relação entre comida e sexo é bastante explorada durante a história. Daí porque a cozinha pode ser considerada um verdadeiro purgatório: a comida e a gula se tornam os instrumentos de tortura para vingar os pecados de luxúria cometidos ao longo filme. Com pitadas de humor negro, essas são as cenas que mais incomodam o estômago do espectador. O mórbido é utilizado sem grandes reservas, num estilo típico dá década de 80, personalizado pela assinatura de Peter Greenaway.
Como resultado, um filme extremamente perturbador, ironicamente colocado na seção de comédia das locadoras. O sentimento de repulsa pelo ladrão é estimulado desde o início, com cenas nada agradáveis de violência e com seu modo sempre odioso de se comportar. Ao contrário, a mulher e o amante embelezam o filme com cenas de amor silenciosas, sempre com o apoio velado do cozinheiro e dos seus anjos: os funcionários do restaurante. Assim, o adultério se torna perfeitamente permissível para o espectador, que certamente irá vibrar – se não passar mal – com o desfecho da trama. Talvez essa seja a mensagem de “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante”: por certos pecados, nem todos merecem pagar. Mas, para aqueles que merecem, a melhor vingança sempre será um bom prato, servido frio.

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