terça-feira, 20 de março de 2007

"Por um mundo mais inocente" por Cecília Almeida


Não seria adorável viver num mundo em que todos os problemas acabassem num final feliz? Um mundo cheio de música, dança e sempre com um pouquinho de sorte? Todos usariam suas belas vozes para expressar suas emoções, em pequenos surtos de cantoria que poderiam ser premiados por alguma academia especializada, quem sabe. A pobreza existiria, mas os pobres viveriam com alegria em sua miséria. Inclusive, aqueles que sonhassem mais alto, poderiam até se tornar parte da rica aristocracia. Esse é o mundo em que todos os desejos viram realidade, e todos poderiam dançar à noite inteira. Pena que é tão difícil acreditar em toda essa beleza, em todo esse encanto, vivendo numa sociedade tão ranzinza quanto a de hoje. Talvez seja por isso que os musicais de Hollywood saíram de moda. Talvez seja por isso que filmes como My Fair Lady (1964) sejam detestados por grande parte da nova geração: eles exigem uma inocência que se perdeu no tempo.
Inocência sempre muito bem interpretada por Audrey Hepburn. Sua delicadeza e seu sorriso encantador tornaram-se uns dos maiores ícones de sua época, e em My Fair Lady isso não poderia ser diferente. No papel de Eliza Doolittle, a vendedora de flores que decide aprender a falar inglês correto para melhorar a vida, ela consegue ser graciosa apesar do irritante tom de voz de sua personagem – nos diálogos, já que nas músicas quem canta é a profissional Mami Nixon. É assim que Eliza conquista a audiência, à medida que se torna uma lady. Depois da transformação, a personagem entra em crise por não saber mais quem é na verdade, ou qual o seu lugar na sociedade. Esse trecho do filme poderia servir como crítica a medidas educacionais paliativas, mas esse conflito é logo deixado de lado quando Eliza descobre como unir sua personalidade às coisas novas que aprendeu.
Entretanto, não é só a mocinha que precisa de uma reforma: o grosseiro Professor Higgins (Rex Harrison) também não tem a menor noção do que é ser um cavalheiro. Machista, misógino e esnobe, o personagem representa o típico solteirão egocêntrico, que não dá importância à mulher até perdê-la e perceber que já estava acostumado a ela. É ele o personagem que mais julga os outros pela sua maneira de falar, desferindo comentários cheios de sarcasmo aos irlandeses, escoceses e americanos pelo seu sotaque diferente. Familiar à realidade brasileira? Pois é, esse tema é cutucado com força no musical, assim como a hipocrisia do moralismo aristocrata. Os defeitos de Henry Higgins são questionados pela personagem de Hepburn durante todo o filme, pois ela é capaz de mudar quem ela é por fora para mostrar que sempre foi uma verdadeira dama por dentro. Ele, entretanto, sempre falou inglês com pronúncia impecável, mas nunca se importou com ninguém além dele mesmo. A relação de amor e ódio dos dois, independente de ser ou não romântica, acaba se tornando o ponto central do filme, o que não é grande surpresa em se tratando de um musical.
Mas nesse mundo não há conflitos que não podem ser resolvidos com um pouco de música. Nos momentos mais dramáticos de reflexão, no meio da rua, todos os transeuntes tornam-se figurantes de um grande e belo ato de dança em que tudo fica mais claro para os personagens. O final feliz sempre premia aqueles que são persistentes e não desistem de seus sonhos, com uma belíssima canção final. Eliza e Henry precisam vencer o próprio orgulho e derrubar as barreiras invisíveis que separam o masculino do feminino. Mas isso não é tão fácil quanto parece, pois exige que eles passem por cima de toda uma ideologia social. Se eles ganham o seu final feliz? Prefiro manter o suspense.
São duas horas e cinqüenta de cantoria quase ininterrupta, o que pode se tornar cansativo aos olhos e ouvidos dos que não tem paciência para o estilo. Para os apreciadores do brilho e pompa típicos de um clássico musical de Hollywood, My Fair Lady promete levantar os ânimos de qualquer um, com sua inocência. É o ideal para quem quer desligar o mundo e voltar a acreditar que pode haver um lugar, numa época distante, em que tudo seja assim. Perfeito.

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