Existem filmes que só são conhecidos por conta de seus diretores e funcionam como meros apêndices de um ensaio sobre o cinema deste suposto diretor autoral. São filmes menores, mera curiosidade. Já alguns diretores ficam imortalizados e eternamente vinculados à determinada película, como se marcados com o sinal de Caim, pelo qual será reconhecido por todos.
Uma outra classe de diretores, mais incomum, parece caminhar em paralelo a seus trabalhos, numa diversidade de histórias e estéticas que despistam a cabeça comum por trás da narrativa. O diretor irlandês Neil Jordan me parece pertencer a essa terceira categoria (eu sempre me confundo com sua filmografia, tendo de lembrar, por vezes, que são seus filmes “Nó na Garganta” e “Lance de Sorte”, por exemplo).
Jordan nasceu em Sligo, Irlanda, em 1950. Sua estréia no campo das artes se deu através da literatura, em 1976, com o livro de contos “Noite na Tunísia” – que eu não sei se tem algum paralelo com um dos clássicos do jazz, “A Night in Tunísia”, de Dizzy Gillespie. Sua literatura lida com referências da mitologia celta e no universo dos sacerdotes druidas. Por sua “habilidade” com o mitológico, foi convidado pelo diretor John Boorman, com quem criou “Excalibur”, filme sobre o Rei Arthur e afins.
Criador de uma série de filmes enormemente diferentes entre si, como “Entrevista com o Vampiro” e “Não somos anjos”, “Café da manhã em Plutão” e “Michael Collins: o preço da liberdade”, Neil Jordan declara que seu trabalho se funda numa “certa impaciência com realidade em geral”1. Podemos perceber esse desassossego com o “real” claramente em seu filme “A companhia dos Lobos”, de 1984. A película é uma versão moderna e psicologizante da história de Chapeuzinho Vermelho, com teor sexual e fortes doses de ambiente surreal.
A idéia fundamental em “A companhia dos Lobos”, que é baseado num conto de Ângela Carter, é de que o caminho da transgressão é o caminho da descoberta e que os riscos podem ser deliciosamente aceitos e realizados, caso desejemos (a questão do desejo é um dos elementos principais). O filme tem duas narrativas principais: o mundo real de Rosaleen, com brinquedos, onde ela dorme e sonha e o mundo da aldeia, delirante. Rosaleen, a protagonista, faz às vezes de uma “chapeuzinho” adolescente, erotizada, e mora numa aldeia que está às voltas com ataques de lobos. Ela vive ouvindo estórias de sua avó sobre mulheres que foram atacadas por homens que se transformam em lobos (lobisomens).
Um dos méritos do filme de Jordan é dar novo relevo ao desgatado ambiente moral, educativo do conto de fadas “Chapeuzinho Vermelho”, indo para além dos bons conselhos, como não falar com estranhos, e criando um cenário para que os não-ditos da nossa moralidade e psique possam ter vazão. Rosaleen sai à floresta – que é um dos símbolos humanos para falar do desconhecido – e se diverte com isso.
A noção de que os seres possuem mais camadas que a aparente unidade do ego – noção expressa nos lobisomens, seres ambíguos - tem contrapartidas em personagens de outras histórias, como o famoso Harry Haller, o “lobo da estepe” de Hermann Hesse. As pessoas têm uma vida interior, avessa às normas, uma vontade bruta que vez ou outra ganha força e irrompe na pele, à luz do dia. Rosaleen, como Harry, guardando seus contextos específicos, carrega um desejo, é polimorfa sexualmente, como toda criança/adolescente.
Existe em Rosaleen o mundo do superego, nas representações do seu sono, no quarto, um quarto infantil, mas também existem camadas distintas de curiosidade e volúpia. Os lobos não perseguem Rosaleen em seus sonhos. Pelo contrário, são atraídos como se por um odor sexual e destroem as fronteiras entre id e superego, a Rosaleen do sonho e a do “real”.
“A companhia dos lobos” é um quase manifesto sobre os desdobramentos sexuais dos contos de fadas, como bem sabem os psicanalistas; é um quase manifesto sobre a inocência e a perversidade, sobre os hormônios e os delírios femininos. Neil Jordan traça um novo desenho para as loucuras humanas, Rosaleen aceita/provoca a loba-de-si.
Notas:
1- http://www.zetafilmes.com.br/interview/neiljordan.asp?pag=neiljordan Acessado em 13.02.2007
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