“O ser humano é estômago e sexo”. Claudio Assis solta essa frase no meio de Amarelo Manga (2002) como uma forma de definir uma espécie de diretriz, de uma forma de encarar a humanidade que o filme segue. É impossível não lembrar dessa frase quando o diretor Peter Greenaway , no filme O cozinheiro, o ladrão, a mulher e o seu amante (1989), explica, pela boca do personagem Albert Spica (interpretado por Michael Gambon), como os prazeres da comida e do sexo são relacionados. Os dois diretores não só tratam sobre esse mesmo tema como fazem questão em deixar isso explícito no meio dos diálogos do filme.
Não poderiam ser filmes mais diferentes, porém. E o que os afasta não deixa de ser algo que Greenaway e Assis também têm em comum: uma opção deliberada de fugir do naturalismo, de ter em seus filmes um enfoque um tanto teatral. A diferença está na forma como esse aspecto teatral se manifesta. Em Amarelo Manga, ele é notável principalmente na atuação dos atores, não muito dada a sutilezas e abusando intencionalmente do overacting – Mateus Nachtergaele até confessou que tinha tomado umas boas doses de cachaça em algumas das cenas em que incorpora o seu personagem no filme, uma bicha vingativa e um tanto caricatural
Já em O cozinheiro..., o teatro é invocado desde o primeiro plano, quando uma cortina se descerra para deixar claro para o espectador o trato que Greenaway propõe: como numa peça, aqui o naturalismo não está presente. A escolha da cortina como símbolo desse trato já é um aviso de que a essência da teatralidade do filme vai ficar por conta da cenografia, concentrada em poucos cenários, que funcionam como diferentes palcos sobre os quais a câmera constantemente desliza em travelings laterais (uma das marcas registradas do diretor): a cozinha, o restaurante, os banheiros do restaurante, a rua em frente ao restaurante, e, já no fim da história, o depósito de livros do amante. Praticamente todas as cenas do filme se passam nestes quatro cenários, cheios de detalhes e construídos para formar uma composição digna de artistas renascentistas (não por acaso, Greenaway, além de cineasta, também é pintor).
O compromisso de Greenaway com a beleza visual é tão radical que ele abre mão deliberadamente da continuidade das cenas, fazendo com que o vestido vermelho de Helen Mirren (Georgina, a mulher do título) se torne branco no banheiro e verde na cozinha para que a composição dos objetos e das cores fique perfeita. A habilidade do diretor está em tornar esse artificialismo fluente e elegante, como um mundo paralelo em que a estética fosse mais primordial que a coerência. Há quase nada disso em Claudio Assis, que foge de qualquer artificialismo nos cenários, preferindo filmar os espaços do submundo Cardinot de Recife: cortiços, botecos, o Centro velho e decadente que deve ficar entre a Boa Vista e o bairro de São José, em Santo Amaro ou nos Coelhos.
Claudio Assis faz essa crueza desembocar no grotesco em algumas cenas particularmente marcantes, como o tiro ao alvo em cadáveres, o registro documental da morte dos bois que tanto horrorizam os vegetarianos e o uso de escovas de cabelo e ventiladores como acessórios sexuais. Esse lado grotesco é ainda mais radicalizado por Greenaway, desde a cena que segue a abertura das cortinas do seu espetáculo, em que os mafiosos liderados por Spica espancam e envolvem em fezes um pobre comerciante que tentou escapar da extorsão da gangue. Ele joga com o contraste sensorial entre o cheiro agradável das flores e da comida recém cozinhada nos travelings da cozinha e do restaurante com o fedor de carne estragada e excrementos, como na cena de abertura ou quando os amantes são obrigados a fica nus em uma câmara frigorífica cheia de carne em decomposição. O contraste entre os dois elementos chega ao clímax na cena final, em que o corpo do amante assassinado é cozinhado e servido para o seu assassino, que é obrigado a comer carne humana cuidadosamente cozinhada e temperada, como um suculento leitãozinho.
A estética dos dois diretores se diferencia dessa forma porque, apesar de terem pontos em comum, o desafio que os dois se impõem são completamente diferentes. Amarelo Manga (numa linha parecida com a de Almodóvar, mas com outro estilo de filmar) é a obra de um cronista do desejo: quer relatar toda a vontade de vida que provém de nossos desejos mais básicos, que para ele aflora com mais força no meio da pobreza suburbana, onde as amarras da civilização já vão perdendo força (esse último ponto é um tanto discutível, já que pode representar uma certa caricatura e romantização da pobreza, mas não vou entrar no assunto nesta resenha).
Já O cozinheiro, o ladrão a mulher e o seu amante é, entre várias interpretações possíveis, uma narrativa de libertação do autoritarismo através da conjunção do desejo sexual e da cultura literária. O amante (Alan Howard) é um apreciador de livros num meio bárbaro em que ninguém lê, que é simbolizado de forma máxima pelo anti-intelecutalismo de Spica. Não por acaso, o livro que ele mais ama é sobre a Revolução Francesa, justamente o momento histórico símbolo do triunfo da razão sobre a autoridade. A estética do filme, repleta de antíteses entre as imagens planejadas, exatas e esplendorosas e o grotesco da barbárie, é uma alegoria para a luta entre uma razão que é a fusão entre o apolíneo e o dionisíaco contra o ressentimento autoritário.
Se o filme de Greenaway como pode ser entendido como uma alegoria, surge um problema: como encaixar o final nesse simbolismo? Será que Greenaway acredita que a Razão tem um destino trágico na história da humanidade, sendo condenada a morrer sufocada por páginas revolucionárias? A vingança final é um retorno racional à barbárie? Ou será apenas uma piada de humor negro que o diretor inglês não conseguiu resistir a usar, independente de qualquer alusão que tenha? É uma característica de grandes filmes, essa, a de deixar mais perguntas do que respostas na mente do espectador.
Não poderiam ser filmes mais diferentes, porém. E o que os afasta não deixa de ser algo que Greenaway e Assis também têm em comum: uma opção deliberada de fugir do naturalismo, de ter em seus filmes um enfoque um tanto teatral. A diferença está na forma como esse aspecto teatral se manifesta. Em Amarelo Manga, ele é notável principalmente na atuação dos atores, não muito dada a sutilezas e abusando intencionalmente do overacting – Mateus Nachtergaele até confessou que tinha tomado umas boas doses de cachaça em algumas das cenas em que incorpora o seu personagem no filme, uma bicha vingativa e um tanto caricatural
Já em O cozinheiro..., o teatro é invocado desde o primeiro plano, quando uma cortina se descerra para deixar claro para o espectador o trato que Greenaway propõe: como numa peça, aqui o naturalismo não está presente. A escolha da cortina como símbolo desse trato já é um aviso de que a essência da teatralidade do filme vai ficar por conta da cenografia, concentrada em poucos cenários, que funcionam como diferentes palcos sobre os quais a câmera constantemente desliza em travelings laterais (uma das marcas registradas do diretor): a cozinha, o restaurante, os banheiros do restaurante, a rua em frente ao restaurante, e, já no fim da história, o depósito de livros do amante. Praticamente todas as cenas do filme se passam nestes quatro cenários, cheios de detalhes e construídos para formar uma composição digna de artistas renascentistas (não por acaso, Greenaway, além de cineasta, também é pintor).
O compromisso de Greenaway com a beleza visual é tão radical que ele abre mão deliberadamente da continuidade das cenas, fazendo com que o vestido vermelho de Helen Mirren (Georgina, a mulher do título) se torne branco no banheiro e verde na cozinha para que a composição dos objetos e das cores fique perfeita. A habilidade do diretor está em tornar esse artificialismo fluente e elegante, como um mundo paralelo em que a estética fosse mais primordial que a coerência. Há quase nada disso em Claudio Assis, que foge de qualquer artificialismo nos cenários, preferindo filmar os espaços do submundo Cardinot de Recife: cortiços, botecos, o Centro velho e decadente que deve ficar entre a Boa Vista e o bairro de São José, em Santo Amaro ou nos Coelhos.
Claudio Assis faz essa crueza desembocar no grotesco em algumas cenas particularmente marcantes, como o tiro ao alvo em cadáveres, o registro documental da morte dos bois que tanto horrorizam os vegetarianos e o uso de escovas de cabelo e ventiladores como acessórios sexuais. Esse lado grotesco é ainda mais radicalizado por Greenaway, desde a cena que segue a abertura das cortinas do seu espetáculo, em que os mafiosos liderados por Spica espancam e envolvem em fezes um pobre comerciante que tentou escapar da extorsão da gangue. Ele joga com o contraste sensorial entre o cheiro agradável das flores e da comida recém cozinhada nos travelings da cozinha e do restaurante com o fedor de carne estragada e excrementos, como na cena de abertura ou quando os amantes são obrigados a fica nus em uma câmara frigorífica cheia de carne em decomposição. O contraste entre os dois elementos chega ao clímax na cena final, em que o corpo do amante assassinado é cozinhado e servido para o seu assassino, que é obrigado a comer carne humana cuidadosamente cozinhada e temperada, como um suculento leitãozinho.
A estética dos dois diretores se diferencia dessa forma porque, apesar de terem pontos em comum, o desafio que os dois se impõem são completamente diferentes. Amarelo Manga (numa linha parecida com a de Almodóvar, mas com outro estilo de filmar) é a obra de um cronista do desejo: quer relatar toda a vontade de vida que provém de nossos desejos mais básicos, que para ele aflora com mais força no meio da pobreza suburbana, onde as amarras da civilização já vão perdendo força (esse último ponto é um tanto discutível, já que pode representar uma certa caricatura e romantização da pobreza, mas não vou entrar no assunto nesta resenha).
Já O cozinheiro, o ladrão a mulher e o seu amante é, entre várias interpretações possíveis, uma narrativa de libertação do autoritarismo através da conjunção do desejo sexual e da cultura literária. O amante (Alan Howard) é um apreciador de livros num meio bárbaro em que ninguém lê, que é simbolizado de forma máxima pelo anti-intelecutalismo de Spica. Não por acaso, o livro que ele mais ama é sobre a Revolução Francesa, justamente o momento histórico símbolo do triunfo da razão sobre a autoridade. A estética do filme, repleta de antíteses entre as imagens planejadas, exatas e esplendorosas e o grotesco da barbárie, é uma alegoria para a luta entre uma razão que é a fusão entre o apolíneo e o dionisíaco contra o ressentimento autoritário.
Se o filme de Greenaway como pode ser entendido como uma alegoria, surge um problema: como encaixar o final nesse simbolismo? Será que Greenaway acredita que a Razão tem um destino trágico na história da humanidade, sendo condenada a morrer sufocada por páginas revolucionárias? A vingança final é um retorno racional à barbárie? Ou será apenas uma piada de humor negro que o diretor inglês não conseguiu resistir a usar, independente de qualquer alusão que tenha? É uma característica de grandes filmes, essa, a de deixar mais perguntas do que respostas na mente do espectador.
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