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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Os incompreendidos, por Ricardo Duarte



É de se admirar como Truffaut transformou um potencial melodrama em uma história lírica e madura. Tendo em mãos uma estória envolvendo um menor ignorado pelos pais, fugindo de casa e sendo mandado para um reformatório, o jovem diretor conseguiu fazer um filme em que as possíveis lágrimas da audiência são transformadas em pequenos sorrisos contidos, em que há doçura, mas sempre com a presença do amargo. Tais pensamentos também me ocorreram ao término do filme “Um gosto de mel”, de Tony Richardson, com o qual “Os incompreendidos” possui bastante semelhanças e formaria uma excelente sessão dupla.

Com uma forma de direção mais calcada no modelo clássico, ao menos quando comparada com a de seu colega Jean-Luc Godard, Truffaut conta uma história simples de maneira simples. A influência do neo-realismo é marcada, principalmente, pelo uso de atores não-profissionais e locações externas. Falando-se dos atores, seria um erro não comentar do garoto que interpreta Antoine Doinel, Jean Pierre Léaud, que é o grande trunfo do projeto. Sendo um filme que depende, basicamente, da conexão dos personagens com o público, Pierre brilha ao dar vida a um adolescente comum, com os mesmos anseios e curiosidades do que qualquer outro. Fica-se difícil, até mesmo, dividir o ator do personagem, pois aparenta que um foi feito para o outro. O monólogo de Antoine contando sobre sua vida para uma psicóloga é um dos maiores exemplos da potência artística do garoto.

Embora dito no parágrafo anterior que Truffaut segue mais uma espécie de direção clássica, pode-se perceber nesse filme, um manifesto. Não tão visível, violento e radical quanto o presente em “Acossado”, mas escondido de forma sutil já numa das primeiras cenas. O professor deixa Doinel de castigo e esse escreve uns pequenos versos na parede, sendo repreendido e humilhado pelo docente, que reclama de sua forma de escrever. Sendo preso por regras e normas, o protagonista acaba por ter de quebrá-las para se libertar. Uma grande metáfora ao que os cineastas da nouvelle vague faziam: quebravam as regras asfixiantes do cinema clássico, e tentavam inovar e dar um novo sopro de vida ao cinema francês, tão criticado por Truffaut no ensaio “Uma certa tendência do cinema francês”.

Um dos pontos mais positivos do filme é o seu final. Optando por um encerramento em aberto, o filme deixa com o público o poder de decidir o futuro de seu protagonista (ou deixaria, caso não houvesse continuações). No última cena, na qual Doinel olha para a câmera de uma forma extremamente marcante, vários sentimentos, como o medo, a incompreensão, a dor, são passados apenas com esse olhar, de forma bastante melancólica. O último fotograma é congelado, e o olhar fita fixamente a platéia por mais algum tempo. É o gesto máximo de carinho do diretor. O personagem é congelado após sua triunfante fuga, ficando preso para sempre naquela imagem estática, protegido da ação devastadora do tempo e guardado intacto nos nossos pensamentos, como um inseto no âmbar.

OS INCOMPREENDIDOS – Uma educação, por João Roberto Cintra


No filme “Educação” (An Education, 2009), da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, há o confronto entre dois tipos de educação: a formal, tradicional, como se tem nas escolas e uma outra, pouco ortodoxa, a da experiência, do dia a dia. Na Inglaterra dos anos 60, com Beatles e Rolling Stones a ponto de pipocarem, fica difícil para a protagonista não se seduzir em deixar a escola para conhecer o mundo. Entretanto, mais cedo do que esse período, a educação tradicional já não bastava para uma juventude que cada vez mais não queria olhar apenas para professores e livros, mas também para o mundo e fazer dele também um aprendizado.

Talvez seja a partir desses paradigmas sobre a educação que se possa começar a (sem trocadilho) compreender “Os incompreendidos” (Les 400 coups, 1959). Filme de estréia de François Truffaut, ele funciona como uma síntese desse sentimento de inadequação por parte dos jovens à educação tradicional que se impõe como “a verdade”. Antoine Doinel é um garoto que parece não pertencer a qualquer esfera em que esteja: em casa, enfrenta uma mãe descuidada; na escola, entra em conflito com o professor. Nesse meio tempo, suas escapadas à rua, ficando dias sem voltar para casa, parecem ser a melhor parte da sua vida, sem qualquer amarra social e tradicional em voga – apenas a descoberta da cidade e da (sua) própria vida.

Um dos clássicos mais celebrados do cinema, há talvez no enredo e na figura de Antoine Doinel a cara de toda a geração responsável pelo movimento do qual o filme se originou. A Nouvelle Vague trazia nos seus realizadores um olhar para o cinema o mais distante possível do que se vinha produzindo até então. O movimento nasceu dentre outras maneiras de uma consciência sobre a memória e a história do cinema, de como tinha sido feito até então – principalmente pela prática da cinefilia, com jovens assistindo e discutindo os filmes em reunião com amigos. Truffaut, Godard, Chabrol e outros da ‘turma’, começaram a enxergar o cinema de outra maneira – não pela gramática formal de se filmar, mas um modo mais livre, sem amarras desse formalismo. Assim como as experiências que buscava Doinel.

Essa ‘nova onda’ que propunha esses jovens realizadores iria de encontro à forma de se conceber o cinema, de se contar uma história. Isso já é claro na forma quase documental que é contado “Os incompreendidos”. Mais que a história do garoto é um recorte na sua vida, em um momento culminante de passagem da infância para a adolescência. As duas fases são recorrentes em todo o filme: as brincadeiras do protagonista com os amigos, a reação das crianças assistindo ao teatro de bonecos; do mesmo modo, Doinel fuma, rouba, é levado para uma delegacia e depois para um reformatório – universos não mais infantis. Sem grandes amarras na história de começo ou fim, o que temos é a história do ‘entre’, o meio, o que não é ainda. Em suma, um rito de passagem do personagem principal – e um rito também para o seu realizador. O olhar enrijecido dos adultos não via o que Doinel podia ver. Os cineastas da Nouvelle Vague não queriam mais enxergar daquele modo.

Interessante pensar que os filmes franceses até o movimento seguiam as convenções do cinema de forma extrema para parecer o mais natural, o mais real possível. Escrevendo para a revista Cahiers Du Cinema os críticos diziam que as convenções cristalizadas retiravam do público a verdadeira noção do que é real. Nos filmes da Nouvelle Vague essas convenções começaram a ser desrespeitadas em nome de mostrar o tempo inteiro ao expectador que aquilo não era a vida, mas um filme. Quebra de racord, montagem não linear, diálogos livres (sem estar diretamente atrelados a “contar” a história) são algumas das características dos filmes, que causaram estranhamento na época (ainda causam!), mas estão a serviço de uma legitimidade da mise-en-scène menos maniqueísta.

Uma das grandes cenas de “Os incompreendidos” está exatamente no encontro do protagonista com a psicóloga no reformatório: mesmo com a voz dela, há o estranhamento de sua imagem não ser mostrada em momento algum. De forma orgânica, Truffaut nos diz que não há um diálogo entre as duas instâncias, uma via de duas mãos, há, sim, um interrogatório. Apesar do estranhamento, não há nela nada de artificial: as respostas diretas, a inquietação das mãos, o olhar perdido de Doinel para nós (ele olha para a câmera, para a platéia) mostram agora muitas verdades e convergem para uma das mais reais e sinceras passagens que o cinema produziu.

“Beijos Proibidos”, de François Truffaut, por Renato Souto Maior



Antoine Doinel em plena juventude parisiense pode ser algo curioso de se observar, como um espião. O título em português, ao ser pessimamente traduzido, faz com que se perca boa parte do sentido e da relação do nome do filme com sua história. Em duas específicas cenas Doinel tenta roubar, literalmente, o beijo de duas igualmente jovens, em tom desastrado; e isso revela muito da personalidade de Antoine. Sua alcunha de incompreendido reaparece logo no início do longa, quando ele é expulso do militarismo por sua incapacidade de se adequar a tamanha mesquinhez e hipocrisia. O ano é 68, e as crises políticas e os conflitos de guerra fervem em um âmbito responsável pelo incidente no mês de maio daquele mesmo ano. A relação é colocada, mas não explorada. A câmera de Truffaut se debruça em um cotidiano por vezes “malandro”, com um estilo e ar de boêmia críveis e integrantes do personagem Doinel.

Sua dificuldade quase total – o quase por causa da sua pseudo-relação com Christine, jovem aparentemente disposta a ter algo com o “estranho” e problemático Doinel – em se relacionar com mulheres é explicitada nas tentativas do jovem em sair com prostitutas e insistir em beijá-las. O beijo do título em português está longe de ser proibido, de fato; é algo roubado, em tentativa. Depois de insucessos em vários empregos Antoine se encontra e vê em uma agência de detetives uma chance para exercitar e colocar em prática todo seu potencial de voyeur em ânsia para solucionar casos externos que acabam por lhe aparecer como “trabalho”. Doinel parece deslocado em uma sociedade não acolhedora ao seu jeito de ser e pensar. A solução, então, para este ajuste se dá perfeitamente adequada através de um emprego onde seu ofício é seguir e “investigar” a vida do outro, e não a sua própria. Como pessoa não pertencente ao meio em que vive, ele transita neste ambiente com transparência e facilidade próprias de uma pessoa física e socialmente desinteressante. A agência de investigação recebe alguns casos, e Antoine é encarregado de atuar em vários deles, com sucesso. O mais relevante dos pedidos é o de um dono de loja de sapatos que vai em busca de um detetive para descobrir o motivo pelo qual seus funcionários o odeiam. Em um trecho engraçado e inspirado o contratante se antecipa logo e diz que sim, é ali mesmo que quer estar, e não em um psicanalista.

O filme carrega uma narrativa leve, até ingênua, e o faz de maneira linear, comportada e muito bem filmada, mas previsível. O envolvimento de Antoine com a perfeita e intocável mulher do dono da loja no qual trabalha, a serviço de seu chefe detetive, aponta para uma possibilidade de deslumbre em uma via de seres humanos extremos. Quando o desengonçado e não muito atraente Antoine se vê assediado por uma mulher inquestionavelmente linda, as coisas parecem obter um estranho equilíbrio. A tal da “beleza interior” é o que parece ter atraído a suposta perfeita senhora, e o futuro do suposto relacionamento fica em suspenso. Truffaut coloca seu protagonista de volta ao convívio de Christine, sua amiga e pseudo-namorada do começo da trama, e parece ter nesta volta um fim possível. O incompreendido Antoine ensaia, finalmente, um possível “final feliz”. Ao passearem em parque parisiense, muito bem enquadrado, filmado e explorado, Truffaut revela um outro personagem, anteriormente mostrado, mas de forma sutil, como um segundo detetive, um olhar externo ao de Doinel. Ao se aproximar, vomitar um texto açucarado, e ir embora, o segundo “detetive”, ou vouyer, se declara a Christine, e confessa ter passado as últimas semanas a segui-la. Sua intenção é nobre, e verossímil, mas a estranheza com que se coloca faz Christine se amparar mais fortemente no já enlaçado Antoine. Em uma sucessão de “fracassos” e tentativas frustradas de adequação em ambiente estranho, Doinel é deixado, nesta produção, em situação muito favorável. O universo de “Beijos – sim – Roubados” sinaliza uma situação desfavorável, pela qual a própria França ultrapassava, que não parece atingir seus protagonistas. A ausência de um corpo, uma voz que seja, a retratar e ressaltar o turbulento período de 68 autentica e permite Doinel ser apenas um desengonçado, não muito atraente, rapaz boêmio de uma Paris suscetível ao puro e simples amor, roubado ou não; somente ele.

“Os Incompreendidos”, por Natália Tavares


Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) só tem um momento de fraqueza. Dentre tantos outros, esse é um dos aspectos do primeiro longa de Truffaut que mais me chamou atenção. Impossível não se emocionar com Doinel quando ele chora no carro da polícia sendo transferido para a prisão, observando as ruas da cidade, único momento em que a fragilidade de uma infância prematuramente perdida aparece na tela. O que demonstra também outro traço importante do filme, a personalidade do personagem principal. Uma criança que amadureceu cedo demais, seja pela vontade de viver sua própria vida, independente dos pais e da escola, seja pela ausência de suas figuras paternas que não conseguem preservar sua inocência infantil.

A rebeldia de Antoine se reflete nas fugas de casa, nos pequenos roubos e no descaso com sua educação e acredito que seja fruto de sua relação com a mãe (Claire Maurier), que pouco demonstra afeto por ele - desejando tê-lo abortado e deixando-o aos cuidados da avó nos primeiros anos de vida – e pouco respeita sua família, ao trair o marido (Albert Rémy). Antoine, ainda criança, é exposto a tudo isso. Ele é sim um garoto gentil quando é encorajado, como na cena em que toda a família vai ao cinema, e ele tem um momento feliz junto aos pais. Porém, esses momentos são raros em seu cotidiano, prevalecendo as constantes brigas entre os pais que o menino consegue ouvir pela porta. Seu modo de escapar de tudo isso são suas fugas de casa, a fascinação pelo cinema e a amizade com René (Patrick Auffay). É assim que Antoine busca fugir de uma conturbada relação com a família e de uma educação aparentemente tirana e injusta.

Truffaut fez um belíssimo filme sobre a juventude de uma época. Apesar dos difíceis dilemas vividos pelo personagem principal, o filme não perde a beleza e a suavidade típicas da juventude, como na cena em que as criancinhas francesas estão assistindo ao teatro de fantoches, com seus olhinhos vidrados, ou nos pequenos toques de humor durante o todo o filme. A juventude de uma Europa do pós-guerra, no contexto da Guerra Fria é representada na tela. De fato, a rebeldia de Antoine Doinel, sua não inocência, e as situações por ele enfrentadas são reflexo de um contexto social que Truffaut aborda com alguns traços autobiográficos.

O filme é em grande parte construído por meio de planos sequência, são poucos os diálogos feitos em plano-contraplano, o que pode ter ajudado a criar a natural atuação do então jovem Jean-Pierre Léaud, que por sua vez deu um toque de naturalidade a todo o filme. A cena final, em que Antoine foge do reformatório também é em plano sequência. Ele vai parar em tal lugar por roubar uma máquina de datilografar da empresa onde o pai trabalha, e é pego ao tentar devolvê-la. Para dar uma lição em Antoine, seu pai decide entregá-lo à polícia. No reformatório, ele conhece muitos outros meninos delinqüentes juvenis que poderiam influenciá-lo a ser ainda mais criminoso. Por fim, Antoine consegue fugir do reformatório e nessa final, é interessante observar como a história dele não acaba ali, e sim deixa para ser contada nos outros filmes da trilogia. Antoine corre, corre e corre, chega na beira do mar, brinca com a água, olha para a câmera, close em sua imagem estática e “fin”. A vontade que tenho é de ver os outros dois filmes da trilogia.