sábado, 13 de junho de 2009
"As sobrancelhas de Godard" por Paulo Faltay
A história não segue uma linearidade, é descontínua, formada por interrupções e curvas abruptas. Em meio à fuga empreendida por Ferdinand e Marianne em “Pierrot, le Fou”, após ser provocado pela personagem de Anna Karina, Ferdinand gira a direção do carro, escapando da estrada e conduzindo o automóvel ao encontro das águas de um rio. Para Godard, a máxima marxista vai além da História; a vida, o cinema e a sua narrativa também não obedecem a uma arbitrariedade linear, são estruturados por interrupções. Afinal, no próprio tema da evasão, que dá início ao filme e é presença recorrente nos filmes do diretor, como Acossado, Viver a Vida e Alphaville, está contida a ideia de abandono a fórmulas pré-concebidas de se viver/contar uma história.
Para Robert Stam, o uso de interrupções na narrativa é um dos mecanismos que ele conceitua como anti-ilusionistas. Com fundamentação teórica no teatro de Brecht, que inseria em suas peças elementos que explicitavam o próprio processo de produção das apresentações, essas técnicas seriam usadas para quebrar o espetáculo e a suspensão fantasiosa da realidade, e retirar o espectador da confortável posição de receptor. Esse efeito de distanciamento, chamado de Verfremdungseffekt pelo encenador, tornaria evidente à plateia que ela está diante de uma obra de ficção, quebrando, assim, a acomodação criada por uma ilusão diegética, e terminaria por provocar um exercício reflexivo sobre a narrativa.
Não por acaso, as obras de Godard são dos objetos de estudo mais caros ao crítico. E Pierrot, que Stam vai caracterizar como uma “suma das artes”, por suas inúmeras referências a diversas manifestações artísticas, também pode ser definido como suma dos artifícios autorreflexivos e anti-ilusionista no cinema. Logo no começo, é citado o pintor espanhol Diego Velázquez, conhecido por suas pinturas carregadas de autorreferência e jogos de espelho. A citação é, na verdade, um aviso do que viria a seguir.
Entre as diversas quebras da narrativa no filme, pode-se destacar a divisão não-cronológica dos capítulos que dividem o filme, a descontínua sequência de fuga do apartamento de Marianne, com planos fragmentados e temporalidade contraditória, além das autorreferências explícitas. Em uma passagem do filme, após Marianne sugerir que eles se divirtam em um hotel de classe, Belmondo vira a cabeça, se dirige à câmera e diz: “Tudo no que ela pensa é diversão”. Questionado por uma confusa Marianne, desejando saber com quem ele falava, o personagem de Belmondo responde: “a plateia”. Em outro momento, para confundir a polícia, o casal forja um acidente, no que Marianne pondera: “Tem quem parecer real. Isso não é um filme”. Por fim, em uma sequência canônica do cinema, Anna Karina chega a posicionar a tesoura em frente à câmera, em alusão clara ao corte de cena.
No entanto, mesmo reconhecendo, e louvando, o caráter reflexivo e as questões apresentadas em Pierrot, permaneço com uma inquietação em relação ao filme. E a resposta para a sensação pode ser encontrada no início da produção. Em meio à atmosfera superficial de uma reunião burguesa em que é intimado pela mulher a comparecer, Ferdinand se encontra, em mais um artifício autorreferente, com Samuel Füller. Ao ser perguntado sobre o que seria o cinema, o diretor responde: “um filme é um campo de batalha: amor, ódio, violência, ação, morte, - em uma palavra, emoção”! Meu incômodo é justamente esse: Pierrot não me desperta nenhum pequeno indício de emoção.
É tudo excessivo, afetado em demasia, e acaba por se revelar superficial. A irritante característica totalizante está presente na brincadeira com os gêneros cinematográficos, na abordagem política e nas referências artísticas. No misto de homenagem com paródia crítica, Pierrot desloca-se em praticamente todos os gêneros: de filme de gangster, road movie, sozinhos-em-uma-ilha-deserta, a uma pitada de comédia romântica com cenas musicais, que até me surpreende o fato de Marianne e Ferdinand não terem uma cena de encontro com Alpha 60. As abordagens mais políticas – a mediocridade da burguesia, os aviões com napalm da guerra do Vietnã, a ridicularização de signos capitalistas, a situação da política francesa, se mostram, na verdade, de pouca profundidade.
E tudo isso me soa ainda mais estéril na caracterização de “suma das artes”. As inúmeras citações – Jack London, Velázquez, Robert Browning, Balzac, Baudelaire, Picasso, histórias em quadrinhos – não parecem dizer nada, soando vazias e fruto de uma egotrip do repertório artístico do diretor. Infelizmente, não consigo fugir do lugar-comum de que esse exercício self-conscious não está a serviço de uma expressão puramente egóica. Essa sensação é ainda maior quando ele próprio se autorreferencia: no momento em que Jean Seberg aparece na tela do filme-dentro-do-filme, nos remetendo imediatamente a Acossado. E nesta brincadeira extremamente nerd, prefiro muito mais encontrar as inúmeras referências à Odisséia de Homero em Lost. É mais inusitado, e, por isso mesmo, mais divertido.
Pierrot se revela para mim nessa dualidade. Por um lado, ele se apresenta como uma obra rica em elementos que marcaram, mudaram e revigoraram o cinema e que permitem pensar o fazer cinematográfico. Por outro, é um filme que pouco me toca, chego mesmo a ter certa repulsa pelos seus excessos. Entretanto, assim como o diretor, também gosto de uma citação. Recorro então a Charles Bukowski.
Em seu livro Hollywood, coincidentemente marcado pela metalinguagem e autorreferência, o escritor relata o encontro do seu alter-ego com um certo cineasta francês, chamado Jon-Luc Modard. Da conversa, Bukowski conta: Jon-Luc continuava falando. Mostrava se dark e bancava o gênio. Talvez fosse um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já tinham me haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare, Tolstói, Ibsen, G.B. Shaw, Checov, todos esses chatos. (...) A bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza que disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas sobrancelhas dele...”.
Enxergo Godard dessa maneira também. Tenho convicção de que o diretor e seus filmes versam sobre coisas fantásticas e incitam discussões ricas, mas prendo a minha atenção apenas nas suas sobrancelhas. E elas são, no meu caso, a dança de Bande à Part, a adorável canastrice do rosto de Belmondo (e o inseparável cigarro no canto da boca) e, com destaque especial, a melancólica e sublime dança solitária de Nana em Viver a Vida. É só nisso que consigo me concentrar.
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