domingo, 14 de junho de 2009

"Ian Curtis, mais perto" por Pedro Neves


Quando Ian Curtis cometeu suicídio, aos 23 anos, no dia 18 de maio de 1980, ele entrou para um panteão. Dele fazem parte Buddy Holly, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin – ídolos do rock que morreram tragicamente jovens. Ou talvez seja mais acertado, visto a personalidade exuberante dos astros acima citados, colocá-lo na companhia de John Keats, Thomas Chatterton e Álvares de Azevedo, poetas românticos de temperamento melancólico, todos mortos antes dos 30.

O cinema tem sido pródigo em fornecer retratos de artistas quando jovens, principalmente quando uma morte fora do tempo vem adicionar uma dose extra de pathos ao relato. Em geral, filmes desse tipo contam com a vantagem da existência de um consenso por parte do público (ou dos fãs, pelo menos) sobre a genialidade do retratado; o destino trágico, já conhecido de antemão pelos espectadores, reveste cada ação com um significado profundo, uma aura sagrada. O mito, enfim, já existe; cabe ao filme alimentar a fome por objetos de culto.

Control, cinebiografia de Ian Curtis dirigida por Anton Corbijn, se não foge das convenções da Legenda Áurea pop, oferece ao mesmo tempo algo distinto: uma visão mais pessoal, íntima e em pequena escala do jovem problemático à frente de uma das bandas mais influentes do mundo. Baseado no livro Touching from a distance, escrito por Deborah Curtis, esposa do músico, o filme, apesar das cenas em clubes noturnos e estúdios de gravação, mantém-se aferrado ao ambiente doméstico.

Control começa como uma história de ennui adolescente. Oprimido pelo tédio suburbano e por uma escola desestimulante, Ian Curtis escapa através de remédios roubados e rock n roll. O vemos em seu quarto, frente a pôsteres de Lou Reed, imitando poses de Bowie. Ele recita Wordsworth de memória. Em sua prateleira, livros de William Borroughs e J.G. Ballard. Essas referências servem uma dupla função: inserem Curtis em uma cultura e uma época e apontam para fontes de inspiração. Mas não parecem meros artifícios para a construção da necessária nostalgia; Ian aparece aqui na condição do fã mais ardoroso, o adolescente deslocado, como tantos outros em tantos lugares e épocas. Se há aqui mitificação, é da adolescência como conceito, e não de Curtis em particular.

Ian conhece Debbie e se apaixona. Ele arranja um trabalho em uma agência de empregos e se casa com a namorada. Sua vida caminha rapidamente para a banalidade de classe média. Mas, paralelamente, outros caminhos estão sendo traçados em sua vida. Inspirado pelo histórico show dos Sex Pistols em Manchester, Curtis, junto com alguns amigos, forma uma banda. Mas não estamos diante do espetáculo da gênese de um grupo lendário; com surpreendente honestidade, Corbijn foca nas dificuldades de se comprometer com uma carreira artística mantendo o emprego diurno para sustentar casa e esposa. O processo de composição das canções é desmistificado: Curtis escreve as letras em um caderninho, rasura, reescreve. O resto da banda não está ali só para fornecer o acompanhamento necessário ao gênio, mas é parte ativa na construção das músicas.

Lentamente, de show em show, Warsaw, como resolveram chamar a banda, começa a chamar atenção do público e de alguns personagens chave, como Tony Wilson, apresentador de um programa de TV e figura central na cena musical que surgia em Manchester. São os primórdios do sucesso. É aí que Control entra numa duplicidade interessante. Sem abandonar a naturalidade e intimidade do relato (em turnê, a banda ainda dirige a própria van e carrega os próprios instrumentos), o filme vai aproximando a narrativa do mito. Não apenas no que há de anedótico na carreira do grupo (agora conhecido como Joy Division), presente no contrato assinado por Wilson com sangue e nos ataques epilépticos do Curtis no palco, mas nas próprias imagens que Corbijn nos apresenta. O diretor foi fotógrafo de muitas bandas inglesas da época. Das poucas fotografias do Joy Divison existentes, algumas das mais emblemáticas são suas. O preto e branco, os longos sobretudos e a paisagem industrial são elementos que fazem parte do imaginário gótico que a banda ajudou a construir. A feiúra dos prédios, a fumaça das fábricas, a miséria dos apartamentos (mais notadamente a decrépita moradia do empresário do grupo), o deprimente ambiente doméstico – à primeira vista doses de realismo, mas características da triste cidade de Manchester já mitificadas pela música de suas bandas. Ao cantar a falta de perspectivas, os grupos de Manchester deram glamour ao desespero – algo que Corbijn aproveita muito bem.

Com o sucesso crescente do Joy Division e o nascimento de uma filha, a pressão sobre Ian começa a pesar demais. O diagnóstico de epilepsia, que requere remédios pesados para manter o controle, abala ainda mais o temperamento frágil do rapaz. Em uma cena particularmente dolorosa, Debbie, depois de descobrir o caso que Ian mantém com uma jornalista, grita com o marido e exige explicações, desculpas, explosões, uma reação qualquer, enfim. Curtis permanece calado: é uma criança assustada, incapaz de lidar com as cobranças da vida adulta.

A fama iminente da banda, com turnê marcada para os Estados Unidos e um segundo disco prestes a ser lançado, traz uma dose considerável de insegurança. Mas talvez por ter sido baseado nas memórias de Debbie Curtis, a cozinha prevalece sobre o palco. Ian Curtis se enforca com as cordas do varal, e partir daí começa o processo de canonização de mais um mártir do rock, adorado nos altares dos quartos adolescentes. Nasce um mito, sua lenda escrita nos evangelhos da MTV e da Rolling Stone. Do jovem epiléptico que escrevia letras de canções depois do expediente no escritório se sabe cada vez menos.

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