segunda-feira, 8 de junho de 2009
“Hollywood sem hipocrisia” por Olivia Souza
Considerado um dos grandes diretores alemães no pós-segunda guerra, Rainer Werner Fassbinder trabalhava em escala industrial. Com uma média de um filme a cada cem dias, sua disciplina e sucesso no cinema contrastavam com uma vida de excessos e comportamentos autodestrutivos. Como forma de desabafo, todos os seus filmes abordavam temáticas muito pessoais de sua vida: a busca pela identidade, o medo, as angústias, intolerâncias, frustrações.
“O medo devora a alma” (1974) não poderia ser mais autobiográfico. Homossexual assumido, Fassbinder expõe, de maneira muito pessoal, todas as dificuldades enfrentadas por pessoas consideradas outsiders na sociedade alemã de sua época. Preparou o roteiro inspirado pelo relacionamento que mantinha na época com o marroquino El Hedi ben Salem, e, para evitar um choque maior, decidiu substituir o papel que cabia à sua figura, trocando-o pelo de uma mulher idosa. Para não perder muito do toque confessional que desejava dar ao filme, convida o próprio companheiro para atuar como um dos protagonistas, Ali – ou El Hedi ben Salem, mesmo nome do ator.
O filme conta a história de Emmi Kurowski, viúva idosa e solitária que numa noite chuvosa conhece Ali, um estrangeiro marroquino em busca de trabalho. Emmi entra num bar para se proteger da chuva, e logo de início se sente atraída pela atmosfera do local: um jukebox tocando música árabe e pessoas “diferentes”. Fica claro que o bar em si tem um papel muito importante no filme, considerado um refúgio para os protagonistas bem como para todos os outros frequentadores, e também, um local de encontro e desencontro do casal. Ali convida Emmi para uma dança, a empatia entre os dois é imediata e ele se oferece para acompanhá-la até a sua casa no caminho de volta. Emmi o convida para ficar mais um pouco, acabam passando a noite juntos e depois de um tempo decidem casar-se, para espanto e indignação dos vizinhos de Emmi e dos seus filhos.
O melodrama norte-americano exerceu grande influência na obra de Fassbinder. Assistindo a vários filmes do diretor hollywoodiano Douglas Sirk, torna-se fã declarado de sua obra. Conhece-o pessoalmente e a partir dessa experiência, muda sua concepção de cinema, trocando o status de cult por um cinema mais popular, buscando um público mais abrangente, um filme “como os de Hollywood, porém sem a hipocrisia”. A influência de Sirk em “O medo devora a alma” é muito forte. O filme tem como principal referência o melodrama “Tudo que o céu permite”, de Sirk. Muitas são as semelhanças entre os dois. Protagonistas mulheres (‘Emmi Kurowski’ e ‘Cary Grant’) – vítimas de uma sociedade opressora e baseada em conceitos moralistas –, que se relacionam com homens mais jovens e assim como elas, também vítimas. Ali, bem como Ron Kirby – papel interpretado por Rock Hudson no melodrama sirkiano –, é pobre e mais jovem que sua companheira, e no caso do filme de Fassbinder, é negro e estrangeiro, o que piora sua situação.
Em comparação às protagonistas mulheres dos dois filmes, podemos dizer que, apesar das semelhanças, Emmi é muito menos passiva que Cary. Apesar de todo o sofrimento que passa, Emmi decide guardá-lo para si mesma. Enfrenta a tudo e a todos, avisa aos filhos do matrimônio apenas depois de casar-se (ao contrário de Cary, que age como se pedisse permissão aos filhos quando os noticia do noivado), exige respeito por parte das colegas de trabalho, dos vizinhos e até do dono do armazém. É corajosa. Sua mudança é visível no decorrer do filme, a personagem cresce, aparece, se veste melhor, fica até mais bonita.
O final não importa, pois mesmo antes dele o diretor cumpre ao que se propõe: cutucar feridas, revoltar. Os personagens inexpressivos, a frieza, as duras palavras e o silêncio constrangedor, são elementos utilizados no filme para nos provocar a sensação de desconforto que paira durante toda a sua exibição.
A vida consegue ser ainda mais cruel que a ficção, Fassbinder morreu aos 37 anos, devido a uma overdose de drogas. O ator El Hedi ben Salem se entregou ao alcoolismo, acabou cometendo um crime e foi preso. Suicidou-se. Ambos morreram em 1982.
Apesar das frustrações que culminaram em seu trágico final, Fassbinder ainda assim não deixou que essas atrapalhassem em sua intensa energia criativa para produzir seus filmes, com uma disciplina vista em poucos diretores. Seus filmes são como denúncias, um grito de socorro dos excluídos, através de um diretor que, assim como suas personagens, também era colocado à margem da sociedade.
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