segunda-feira, 8 de junho de 2009

"Laura" por Rafael Monteiro Sotero de Melo


Fedora. É um tipo de chapéu macio que forma um pequeno arco que descende na parte da frente. Ele é praticamente igual ao Humburg e ao Trilby, mas na frente de sua parte superior há um estrangulamento nos dois lados. Assim, a parte superior forma quase um losango irregular. Além disso, só ele pode ser apontado como um dos principais representantes do filme noir. E por quê? Bem, quem viu um detetive de noir sem um Fedora que atire a primeira pedra.

É justamente o Fedora que nos dá uma dica no primeiro minuto do filme Laura, um dos primeiros noir. Todo mundo no filme usa um Fedora, com exceção de Waldo Lydecker, que usa um Tilbry. Podemos dizer que isso se dá porque ele é um dândi bem aos modos de Oscar Wilde (só para não ser tão homófobo). Nada mais natural que ele usar um chapéu diferente, certo?

Errado. Estamos falando de um filme noir. Tudo começa no suposto assassinato de Laura Hunt, uma mulher independente e de conduta um pouco questionável para a década de 40. Qualquer detalhe torna uma pessoa suspeita e não deve ser descartado. Isso vai influenciar na tentativa de achar a resposta de uma das principais perguntas de um noir: quem é o assassino?

É curioso como esse tipo de diversão tenha se perdido ultimamente no cinema. Hoje, os filmes de investigação mais se destacam pelo mistério e pelo suspense. Até coisas sobrenaturais e nojentas são usadas para tentar despertar o interesse dos espectadores que já descobriram algumas dezenas de assassinos. Os detetives atuais se debruçam sobre os cadáveres e ficam buscando detalhes microscópicos que são inventados a todo instante por um jogo de câmera.

Em Laura nem somos sujeitados a ver esse tipo de cena. Sabemos logo de cara como a personagem foi aparentemente morta. Só precisamos saber quem deu o tiro. E é ai que está um charme do filme. Todo mundo tem motivos para matá-la e motivos para não matá-la. Todos têm álibis. Todos são igualmente suspeitos no começo. Cabe ao detetive Mark McPherson tentar desatar o nó.

E tudo fica mais complicado ainda quando numa noite de bebedeira, o detetive vê a própria vítima entrar em casa. Ele surge quase como um fantasma no meio de uma névoa. Chegamos a pensar que é um sonho ou ilusão, mas não. Laura está viva. O jogo do detetive fica mais e mais complicado com isso.

Aqui vale a pena destacar a personagem Laura, interpretada pela atriz Gene Tierney. Há até quem a considere apática e que não passa de um rostinho bonito e muitas até frágil. Mas não é interessante que era surja assim? Ora, qual era a necessidade de mostrá-la uma mulher forte? Só porque todos se lembravam de uma pessoa idealizada. Se formos falar de lembranças dos entes queridos, ACM mereceria ser beatificado na Bahia. Será que depois de se mostrar frágil e confusa, Laura precisaria olhar obliquamente para a câmera e dar um leve sorriso dissimulado?

É engraçado achar Laura apática quando o nosso exemplo menor de femme fatale seria Capitu. A situação fica mais curiosa quando notamos que o Waldo realmente parece o Dom Casmurro numa versão witty. Talvez possamos comparar essa beleza que causa tragédias à personagem Remédios de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez. Esta era uma jovem mentalmente retardada que causava a morte daqueles que se apaixonassem por ela. Talvez a beleza seja a única coisa fundamental nessa história.
Isso talvez fique mais claro quando notamos a forma que os relacionamentos da protagonista literalmente fluem de homem para homem. Primeiro Waldo, depois um pintor figurante que fez o belíssimo quadro da protagonista, depois o inútil do Shelby e finalmente o próprio detetive Mark McPherson. Este último é um caso bem curioso, pois vamos vendo como ele vai se apaixonando aos poucos pelo fantasma de Laura (despertando até o ciúmes póstumos de Waldo), mas realmente é um mistério que Laura tenha se apaixonado por ele. Foi algo muito súbito. Coincidentemente sua paixão varia de acordo com a sua necessidade e creio que isso decepciona o espectador. A femme fatale deve usar os machos a seu bel prazer e quiçá no final se entregar de corpo e alma a um só alfa. Qual o ponto dela realmente gostar de todos aqueles homens?

Provavelmente não passa de combustível para a tragédia. No cinema atual, algum dos machos poderia dar um risinho maligno para a câmera no final; isso nos faria imaginar no Laura 2, como seria. O diretor foi mais conservador. Preferiu começar no relógio e terminar nele próprio. Ele nem sequer deixou margem para pensarmos no que poderia acontecer a todos os envolvidos depois do desfecho. Parece que uma vez solucionado o mistério, o noir não tem motivos para continuar. Posso imitar-lhe o exemplo e voltar para o começo deste texto. Ainda acho muito estranho que logo de cara o assassino use um Tilbry, enquanto todo o resto use Fedora.

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