segunda-feira, 8 de junho de 2009

"Uma imagem é para sempre" por Felipe Lima


Sabe aquela imagem que você tem certeza de já ter visto antes, mas não sabe onde? Aquela cena em particular, que sempre habitou seu imaginário cinematográfico, de uma senhorita de cabelo tipo channel, enrolada em um roupão, estirando língua para uma garotinha na fila de um banheiro coletivo. Pois é. Sempre me lembrei dessa seqüência. Acho que vi em alguma retrospectiva do Oscar, dessas que fazem quando algum artista vem a falecer. Ou não. Talvez tenha sido em algum dvd, antes de aparecer o menu, num apanhado de cenas antológicas exibidas ao som de As Time Goes By. Enfim. Descobri de onde a cena é. A moça da língua é Claudette Colbert. O filme é Aconteceu naquela noite (It Happened One Night, EUA, 1933) de Frank Capra. E agora ele habitará minhas lembranças por diversos outros motivos.

O primeiro deles é porque poderei dizer em rodas de amigos, mesas de bar ou até quem sabe no meio de uma paquera, que ele foi o primeiro road movie do cinema norteamericano (até onde sei não há nenhum filme do Uzbequistão filmado antes que conte a história de pessoas em meio a uma viagem que lhe revelarão não só novos lugares, mas diferentes formas de enxergar o mundo. Logo tenho tudo para crer que é o primeiro da história do cinema). Claudette faz o papel de Ellie Andrews, uma moça milionária, de casamento marcado com um famoso piloto de avião, porém não aprovado pelo pai. Na tentativa de se impor, foge do iate da família a nado e pega a estrada em busca dos braços de seu amado. Clark Gable é Peter Warren, um repórter safo que, embriagado, acaba de pedir demissão por telefone e que mais tarde enxerga em Ellie a oportunidade de retornar de forma triunfal com um grande furo jornalístico, haja vista que ela é a filha do milionário que encheu de manchetes os jornais na tentativa de encontrá-la. Estão lançadas as primeiras peças de um quebra-cabeça romântico que até hoje seduz platéias no cinema: dois opostos que mais tarde virão a se aproximar.

Eis o segundo motivo para eu reservar um lugar especial na minha memória para o longa. Ele é um grande representante do gênero screwball comedy, a comédia das maluquices e, por que não, do romantismo. Em meio a uma série de confusões, Gable e Colbert vão se descobrindo. Ele percebe que ela não é tão mimada quanto achava. Ela deixa de vê-lo como um malandro metido aengraçadinho. Fingem ser um casal. Dormem juntos separados por uma lençol batizado de Muralha de Jericó. Conversam. Muito. De forma rápida. Diálogos cheios de piadinhas, tiradas, chistes. Ele mostra como molhar de forma correta a rosquinha no café. Ela ri. Tentam pedir carona. Ele se gaba de ter uma fórmula infalível para tal. Ela mostra que a sensualidade feminina (ainda que extremamente recatada para a época) é mais frutífera. Ele não se conforma. Ah, eles cantam no ônibus. Algo sobre um trapezista. Ele finge ser um mafioso para despistar um passageiro paquerador que descobre logo depois ser ela a filha do pai magnata que estampa os jornais.

A terceira razão para enaltecer Aconteceu naquela noite deve-se ao seu diretor, ou melhor, ao seu maestro. Sim, maestro. Porque o filme é afinado. Todo ele. Dizem por ai, que o nome certo para essa afinação no cinema é timing. Que seja. Não é à toa que faturou cinco Oscars: melhor filme, melhor diretor, melhor roteirista e melhores ator e atriz. O primeiro da história a conquistar os cinco principais prêmios. Capra já ostentava em seu currículo 23 filmes como diretor, além de ter contribuído como roteirista e produtor de outras dezenas de películas. Em suma, entendia bem as nuances de cada etapa de gestação e elaboração de um bom filme. Inovando em diversos aspectos, adotou o estilo road movie para dar uma dinâmica que acompanhasse a rapidez das linhas do roteiro. O filme tem diversos cenários, internos e externos, o que para em 1933 era uma certa revolução. Fácil explicar então porque foi um sucesso tanto para os telespectadores comuns, que lotaram os cinemas para assisti-lo, quanto para os mais entendidos.

Falando em entendidos, talvez eles não enxerguem grandes mensagens em Aconteceu naquela noite. É porque não há mesmo. Não existe nenhuma grande lição. Trata-se de uma história de amor, repleta de percalços, calcada no embate dos opostos. Há de se reconhecer que são opostos sociais, o que suscita alguns questionamentos sobre estereótipos e a forma como as classes se posicionam em determinadas situações. Mas nada aprofundado. Afinal, o objetivo é contar como um romance começou. De onde veio a fagulha que deu início ao incêndio.

Ainda que desprovido de profundidade sociológica, Aconteceu naquela noite é cheio de momentos deliciosos. Daqueles que fazem você grudar, torcer, se empolgar, rir, se divertir. Seqüências antológicas que desprezam grandes invencionices. Basta Clark Gable e Claudette Colbert estarem sentados em uma cerca na beira da estrada. Já é uma imagem histórica. Dessas exibidas na retrospectiva do Oscar quando um artista que participou da obra vem a falecer. Ou daquelas que compõem um mosaico de lembranças que passam antes de aparecer o menu de um dvd. Ao som de As Time Goes By.

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