domingo, 21 de junho de 2009

"Tudo se Repete" por Wesley da Silva Prado




Padrões. A vida é feita de padrões. Somos seres dependentes de algo que nos estabilize. Ao mesmo tempo, buscamos a novidade, sem nem ao menos desconfiarmos que aquela novidade se tornará mais um padrão. Greenway com o seu “Afogando em Números” (1988) mostra o quanto pode ser destrutiva a força de um padrão.

Ao se iniciar o filme, somos apresentados a uma menina de visual um tanto extravagante, mas de beleza poética, pulando corda enquanto conta estrelas. Quando indagada porque parou em cem, ela responde simplesmente: “Cem são suficientes. Depois de cem tudo se repete”. Percebemos, cedo, que tudo não passará de um jogo de contar até cem, camuflado em meio à teia que envolve os personagens.

Três mulheres de nomes idênticos – Cissie Colpitts, mãe e filhas – afogam seus maridos pela insatisfação no relacionamento, gerada por diferentes motivos: adultério, desinteresse ou a simples constatação de que cometeu um erro. Todas elas apelarão a Madgett para encobrir seus crimes. Ele é um legista dramático, apaixonado por jogos intrincados e cujo filho, Smut, sofre de uma obsessão por contar de tudo, de folhas numa árvore a mortes violentas. Madgett e Smut formam interessante simbiose, onde o primeiro cria simbologias lúdicas de seu microcosmo e o segundo se satisfaz muitíssimo se dedicando a elas.

Dos personagens, conhecemos os padrões que os envolvem através dos bastões do Pegue o Morto – uma antecipação de seu futuro – e das complexas regras do Cricket do Enforcado, uma alegoria do relacionamento entre eles, além de outros jogos, que não mencionarei para não estragar a surpresa o prazer em descobri-los. Além disso, o próprio Greenway nos convida para jogadores de seu filme, ao nos fazer procurar loucamente pelos números (nos objetos e/ou nas pessoas) e pelas referências às pinturas clássicas (como a menina da abertura, ligada diretamente ao “As Meninas” de Velásquez). Outro jogo é o de claro-escuro, também fruto da obsessão de Greenway pela pintura, e muito bem realizada pelo fotógrafo Sacha Vierny, parceiro do diretor em outras obras. As seqüências horizontais, como que passeando a vista por um longo quadro, atesta novamente essa marca de Greenway.

Razões de conflito surgem entre as Cissies e Madgett, pois ele as deseja, porém sofre seguidas rejeições. Esse jogo de Eros e Tânatos, essa sedução, é uma representação dos padrões que criamos: buscamos os mesmos objetivos através de diferentes estratégias (o prazer, a felicidade. Ou seja, Eros, a vida). Acontece que nem sempre os alcançamos e isso nos gera frustração e um dia tudo acaba (Tânatos).

As Colpitts, por sinal, são as criaturas mais complexas do filme. Mesmo com
a frustração no casamento levando-as às raias do assassinato, elas choram pelo marido morto logo em seguida. Arrependimento? Culpa? As três Cissies são basicamente a mesma pessoa, com pouco mais que a idade para diferenciá-las. Inteligentes, manipuladoras, oportunistas. Há uma frase de Cissie I, um jogo de palavras, que talvez responda a questão: “Eu não o matei: ele se afogou. Eu o afoguei”. As coisas simplesmente acontecem, nenhuma culpa, mas algum arrependimento.

Assistir “Afogando em Números” é um exercício de mergulho profundo no universo hermético e ao mesmo tempo convidativo de Greenway. Sair afogado desse filme é altamente recomendável. E para fechar, só uma última pergunta: quanto falta para você terminar de contar até cem?

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