segunda-feira, 22 de junho de 2009
"O gosto da romã" por Paulo Faltay
Dizem que antes de ser morto por oficiais invasores do exército persa, o poeta e trovador armênio Harutyun Sahakya (mais conhecido como Sayat Nova, que significa o “Rei das Canções”) teria proferido as seguintes frases: “Eu nunca vou parar de seguir Jesus” e “Eu irei morrer armênio”. Pode até mentira, mas ilustra bem a mística que se criou em torno do poeta, transformado em símbolo da cultura, música e literatura armênia e mártir do seu povo. Essa mística é revisitada em “A Cor da Romã” (Sergei Paradjanov, 1968), filme que conta, ou melhor, ilustra, a vida e obra de Nova, no que talvez seja a mais inusitada cinebiografia do cinema.
Desde a infância do poeta, a juventude vivida na corte do Rei Heracles II, da Geórgia, a paixão pela irmã do monarca, seus descaminhos, o refúgio num mosteiro até ser morto pelo exército Persa, tudo é mostrado através de poemas seus, a vida de Nova é retratada em composições simbólicas e extratos de seus poemas, que retratam a cultura armênia medieval em um mundo cheio de mistério, símbolos e imagens.
A escolha pela recriação do aspecto místico da Idade Média, contemporâneo da Armênia de Sayat Nova, é estabelecida pelo sequenciamento de Tableaux Vivans. Com esse rigoroso e idiossincrático esquema formal, Parajanov filma artefatos de forte valor simbólico, e de cores vivas, que retratam santos, o poeta em gestos e poses, sua arte e reflexões sobre a vida e a morte como também imagens impregnadas de sensualidade, a cultura armênia com sua música, seus costumes, festivais e paisagens. As sequências são constituídas de traduções da obra lírica do poeta, de maneira não facilmente perceptíveis ao espectador, requerendo um exercício sensorial e de subjetivismo ao apreciador de arte.
Essa urgência de um novo olhar também é perceptível nas críticas sobre o filme. Após rápida busca na internet, tive a sensação de que “A Cor da Romã” seria o filme que recebeu as críticas mais chatas e pretensiosas. A maioria dos textos enumerava as técnicas, detalhando os elementos constitutivos das sequências, esmiuçando seu simbolismo e os aspectos formalistas do diretor. Dada a linguagem incomum da obra de Parajanov, esse detalhamento das sequências visuais parece cair no lugar-comum dos textos que contam a historinha do filme, e pior, esvaziaria, de certa forma, o rico exercício de intuição que é facultado àqueles que assistem ao filme.
Outra leitura equivocada seria aquela que caracteriza o filme como não-narrativo. Embora conte com uma linearidade desconexa, é errôneo não apontar uma narrativa. Pelo contrário, a estrutura básica e mais tradicional das cinebiografias – apresentação de momentos importantes da vida do protagonista – é repetida, a natureza experimental do filme está na sua linguagem, a poética.
E é justamente nas suas ambiguidades que “A Cor da Romã” se revela magnífico. Esse experimentalismo da linguagem, e é significativo que cause estranhamento e espanto mesmo 40 anos depois de ser lançado, o condiciona a uma característica de avant-garde. Porém, a modernidade da obra de Parajanov está, contraditoriamente, assentada em representações medievais É um avant-garde tradicionalista, com um olhar benevolente à volta a um passado lúdico e utópico. Por outro lado, a encenação cinematográfica da cultura da Idade Média, que confere um ar de sofisticação e alta cultura ao filme, é essencialmente brega. Filmar personagens de túnicas e vestimentas bizantinas, tapeçaria e arquitetura medieval, com toda a ideia de repetição e artificialidade, é excessivamente kitsch, dialogando também com um retorno a um paraíso perdido em algum lugar do passado. A imagem que me vem à cabeça é da biblioteca de uma falida família aristocrática cuja cobertura ostenta uma reprodução do teto da Capela Sistina, de Michelangelo. Tem beleza, sofisticação e é breguíssimo. E, talvez por isso, me encante. Para mim, não há uma linha tênue, o sublime e o ridículo caminham concomitantemente.
Por fim, apesar da linguagem poética experimental, cujo hermetismo flerta com a ideia de autonomia da obra de arte, é bastante perceptível porque o filme foi considerado subversivo dentro do contexto histórico-social em que foi lançado. Além da autoafirmação de uma minoria étnico-religiosa, motivações que permanecem obscuras para quem não é familiarizado com a colcha de retalhos que é a geografia social da região do Cáucaso, a opção por contar a vida de Nova através da encenação de sua atormentada alma, do seu interior, e pela ambição de fomentar uma experimentação sensorial de sua obra vai de encontro ao realismo soviético. Longe das representações heróicas dos heróis nacionais, “A Cor da Romã” é libertário por proporcionar uma apreensão da vida do poeta pela suspensão da realidade, através do lúdico, do onírico.
A riqueza visual de "A cor da romã” é construída por uma bem orquestrada coreografia, que convida o espectador a um diálogo, não só o sobre a vida e obra do poeta, mas também sobre a cultura do povo armênio. Sem obedecer claramente a noções dramáticas lógicas, suas composições criam uma atmosfera surrealista, um universo próprio, constituído de sonho e simbolismo. O filme de Paradjanov solicita um exercício de intuição e subjetividade para admirar a beleza de suas imagens, transmitindo sensações, sendo possível experimentar não só a cor da romã, mas também o seu gosto.
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