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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Mestre das Canções. Sayat- Nova (A cor da romã, 1968, Sergei Paradjanov), por Lorena Arouche




Sayat- Nova não é um filme corriqueiro.

Sayat- Nova não é um filme narrativo ou biográfico. Muito embora represente cronologicamente (em aproximadamente 9 fases que vão desde a sua infância, passando pela sua vida na corte e no monastério, até sua morte na velhice) vários ritos da vida do poeta trovador armênico do século XVIII, vulgo Sayat-Nova, ainda que essa não seja a pretensão primeira do diretor soviético.

Sergei Paradjanov, quase dois séculos depois de Sayat-Nova, teve vida atribulada. Persona non grata em seu meio, foi perseguido, preso, censurado e proibido de filmar por desafiar manuais e regras do senso comum, dentro e fora das telas. Diretor de cinema e artista, nascido na Geórgia soviética, sua obra fílmica foi de grande contribuição para a Ucrânia, Geórgia e Armênia.

Sayat- Nova não é um filme político. Apesar de toda a controvérsia e perseguição política ao Paradjanov, o filme é um experimento artístico, diria, bem sucedido imageticamente. Imerge no mais essencial campo da poesia, o metafísico, o transcendental. Sayat- Nova funde poesia e poiesis. Tal apelo criativo e poético converge e associa-se às demais artes visuais e perfomáticas, teatro e pintura, quiçá dança.

Alegorias, metáforas, simbolismos… Sayat- Nova é um sonho lúcido que permite o sonho dentro do sonho. Cada plano é uma tela de confuências artísticas, de influência barroca, com remanescência na arte bizantina, suas cores de alto contraste, equilíbrio na composição, riqueza de detalhes e do decorativo, raros são os momentos pontuais nos quais o plano é minimalista.

O filme se utiliza de planos fixos, nesse ponto mantém-se refém do teatro e da pintura, da frontalidade, posicionando o protagonista no centro do ecrã. Os personagens nos encaram interpelativos, não ignoram a câmera, que, fixa, nega movimentar-se.
Os cortes não prezam pela invisibilidade. Por vezes são abruptos na tentativa de fazer o espectador descolar e adentrar com limitações ao ilusionismo, à apreciação e, ou, ao apelo ocasionado pela força centrípeta da imagem.

Entre as imagens iniciais do filme vemos um livro aberto, enquanto versos do poeta são recitados em off, e temos a primeira alegoria produzida: 3 romãs vermelhas, inteiras, sangram, imóveis.
A Cor da Romã não é o título original e talvez tenha sido sugerido ao tradutor neste exato momento inicial, reforçado pela imagem posterior, próxima ao epílogo, de outras 3 romãs apunhaladas que sangram despedaçadas e simbolizam a morte do poeta.

Sayat- Nova é uma janela, um portal. Qualquer tentativa de interpretação da obra há de ser cautelosa para não recair em mero reducionismo, devido ao seu potencial abstracionista e sua grandiosidade.

Sayat- Nova não é um filme corriqueiro.

É uma obra de arte em 24 quadros por segundos.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

"O gosto da romã" por Paulo Faltay


Dizem que antes de ser morto por oficiais invasores do exército persa, o poeta e trovador armênio Harutyun Sahakya (mais conhecido como Sayat Nova, que significa o “Rei das Canções”) teria proferido as seguintes frases: “Eu nunca vou parar de seguir Jesus” e “Eu irei morrer armênio”. Pode até mentira, mas ilustra bem a mística que se criou em torno do poeta, transformado em símbolo da cultura, música e literatura armênia e mártir do seu povo. Essa mística é revisitada em “A Cor da Romã” (Sergei Paradjanov, 1968), filme que conta, ou melhor, ilustra, a vida e obra de Nova, no que talvez seja a mais inusitada cinebiografia do cinema.

Desde a infância do poeta, a juventude vivida na corte do Rei Heracles II, da Geórgia, a paixão pela irmã do monarca, seus descaminhos, o refúgio num mosteiro até ser morto pelo exército Persa, tudo é mostrado através de poemas seus, a vida de Nova é retratada em composições simbólicas e extratos de seus poemas, que retratam a cultura armênia medieval em um mundo cheio de mistério, símbolos e imagens.

A escolha pela recriação do aspecto místico da Idade Média, contemporâneo da Armênia de Sayat Nova, é estabelecida pelo sequenciamento de Tableaux Vivans. Com esse rigoroso e idiossincrático esquema formal, Parajanov filma artefatos de forte valor simbólico, e de cores vivas, que retratam santos, o poeta em gestos e poses, sua arte e reflexões sobre a vida e a morte como também imagens impregnadas de sensualidade, a cultura armênia com sua música, seus costumes, festivais e paisagens. As sequências são constituídas de traduções da obra lírica do poeta, de maneira não facilmente perceptíveis ao espectador, requerendo um exercício sensorial e de subjetivismo ao apreciador de arte.

Essa urgência de um novo olhar também é perceptível nas críticas sobre o filme. Após rápida busca na internet, tive a sensação de que “A Cor da Romã” seria o filme que recebeu as críticas mais chatas e pretensiosas. A maioria dos textos enumerava as técnicas, detalhando os elementos constitutivos das sequências, esmiuçando seu simbolismo e os aspectos formalistas do diretor. Dada a linguagem incomum da obra de Parajanov, esse detalhamento das sequências visuais parece cair no lugar-comum dos textos que contam a historinha do filme, e pior, esvaziaria, de certa forma, o rico exercício de intuição que é facultado àqueles que assistem ao filme.

Outra leitura equivocada seria aquela que caracteriza o filme como não-narrativo. Embora conte com uma linearidade desconexa, é errôneo não apontar uma narrativa. Pelo contrário, a estrutura básica e mais tradicional das cinebiografias – apresentação de momentos importantes da vida do protagonista – é repetida, a natureza experimental do filme está na sua linguagem, a poética.

E é justamente nas suas ambiguidades que “A Cor da Romã” se revela magnífico. Esse experimentalismo da linguagem, e é significativo que cause estranhamento e espanto mesmo 40 anos depois de ser lançado, o condiciona a uma característica de avant-garde. Porém, a modernidade da obra de Parajanov está, contraditoriamente, assentada em representações medievais É um avant-garde tradicionalista, com um olhar benevolente à volta a um passado lúdico e utópico. Por outro lado, a encenação cinematográfica da cultura da Idade Média, que confere um ar de sofisticação e alta cultura ao filme, é essencialmente brega. Filmar personagens de túnicas e vestimentas bizantinas, tapeçaria e arquitetura medieval, com toda a ideia de repetição e artificialidade, é excessivamente kitsch, dialogando também com um retorno a um paraíso perdido em algum lugar do passado. A imagem que me vem à cabeça é da biblioteca de uma falida família aristocrática cuja cobertura ostenta uma reprodução do teto da Capela Sistina, de Michelangelo. Tem beleza, sofisticação e é breguíssimo. E, talvez por isso, me encante. Para mim, não há uma linha tênue, o sublime e o ridículo caminham concomitantemente.

Por fim, apesar da linguagem poética experimental, cujo hermetismo flerta com a ideia de autonomia da obra de arte, é bastante perceptível porque o filme foi considerado subversivo dentro do contexto histórico-social em que foi lançado. Além da autoafirmação de uma minoria étnico-religiosa, motivações que permanecem obscuras para quem não é familiarizado com a colcha de retalhos que é a geografia social da região do Cáucaso, a opção por contar a vida de Nova através da encenação de sua atormentada alma, do seu interior, e pela ambição de fomentar uma experimentação sensorial de sua obra vai de encontro ao realismo soviético. Longe das representações heróicas dos heróis nacionais, “A Cor da Romã” é libertário por proporcionar uma apreensão da vida do poeta pela suspensão da realidade, através do lúdico, do onírico.

A riqueza visual de "A cor da romã” é construída por uma bem orquestrada coreografia, que convida o espectador a um diálogo, não só o sobre a vida e obra do poeta, mas também sobre a cultura do povo armênio. Sem obedecer claramente a noções dramáticas lógicas, suas composições criam uma atmosfera surrealista, um universo próprio, constituído de sonho e simbolismo. O filme de Paradjanov solicita um exercício de intuição e subjetividade para admirar a beleza de suas imagens, transmitindo sensações, sendo possível experimentar não só a cor da romã, mas também o seu gosto.

domingo, 21 de junho de 2009

"A cor de quê?" por Rafael Monteiro Sotero de Melo


Aqui estou só para ser malvado. Em minha defesa evoco que tudo pode ser revisto dependendo do ponto de vista. Se estou sendo malvado, é porque Sergei Paradjanov começou. Para começar de forma simpática, o diretor me lembrou exatamente tudo aquilo que detesto em poesia: aquele afastamento do real e daquilo que é facilmente compreensível. Claro que quando há um propósito nisto tudo perdoamos rapidamente o poeta. Mas é possível perdoar Paradjanov? Talvez em outra vida, sou rancoroso.

A obra contaria a história de um trovador armênio conhecido como Sayat-Nova, que numa tradução roubada de alguém significaria “o Rei das Canções”. Digo “contaria” porque a narrativa é algo nulo aqui. Na verdade, recuso-me de considerar a obra um filme. Até nos tempos do cinema mudo de Eisenstein, a narrativa sempre foi algo fundamental ao cinema. Sempre é necessário contar/mostrar algo. A cor da Romã até mostra algo, mas não de forma cinematográfica.

É uma obra mais próxima da linguagem do teatro e das apresentações de slide que do cinema. E não falo só para causar choque. A suposta narrativa da vida deste poeta senhor das canções estaria contada em capítulos onde vemos uma seqüência de imagens talvez até signifique algo para os armênios, mas não significam realmente muita coisa para pessoas normais. E digo isso com todo o preconceito do mundo.

Aparentemente é preciso imaginar a narrativa de alguma forma. Pensar que se aquela legenda fala da infância, então aquela criança deve ser o poeta. Se fala de juventude, aquela mulher deve ser o poeta. Se fala de velhice, aquele barbudo é o poeta. Mas realmente fica difícil imaginar porque diabos aparece um grupo de homens comendo a indigesta casca de romã.

Esgotado o ódio, ainda sobra espaço para admirar uma coisa ou duas do filme. Ele tem um dos méritos das apresentações de slides, principalmente aquela que vêm sob a forma de correntes por email: é bonito. As cores são limpas e os ângulos sugerem uma noção estranha de profundidade. Muitas vezes até parece uma pintura em movimento. No entanto, como a beleza de uma paisagem, essas imagens acabam sendo somente belas. Você admira, tenta pensar no que significa, mas logo tem que ver outra imagem bonita que vai te obrigar a pensar novamente e assim por diante. É como seguir numa estrada onde belas vistas vêm e vão sem que realmente signifiquem nada para você.

Assim o espectador não está tentado a sentir algo pelo filme, a não ser cansaço. Beleza pode ser até fundamental, mas quem casaria com uma escultura? Se for surrealista, pior ainda. E no fim continuo sem saber nada sobre o poeta e sobre a Armênia.

terça-feira, 16 de junho de 2009

“Os desafios da cor da romã” por Rafael Leandro


Romã. Fruta não muito conhecida, de aspecto meio estranho, de um colorido opaco por fora, mas bem viva por dentro. A fruta que dá nome (pelo menos o nome com que a produção foi exportada para a maioria dos países) ao filme “A cor da romã” (“Sayat Nova” 1969), pode, de um modo meio exagerado, dizer alguma coisa sobre essa película bastante audaciosa.

Filmado em 1969 pelo elogiadíssimo, mas nem tão conhecido, Sergei Paradjanov, “A cor da romã” traz a vida de Sayat Nova (1712-1795), poeta e trovador tido como um dos principais nomes da cultura armênia e cujas obras marcam a literatura do século XVIII naquele país. No entanto, não espere uma biografia filmada ou um relato histórico da vida de Nova, o que se vê é a exposição erudita da poesia do mesmo, reunida a uma miscelânea de ritos e aspectos totalmente ligados ao mundo armênio e a região do Cáucaso.

Paradjanov extrapola a fronteira do tradicional e do normal no cinema, sua ousadia chega a assustar. O filme não tem diálogos, as cenas são paradas, plano fixo, trilha sonora plenamente lírica, a composição das imagens está acima de tudo, principalmente do enredo. Da vida até a morte do profeta Sayat Nova é mostrado, de uma forma bem ritualística, extratos de poesias, cânticos e solenidades que são totalmente incomuns e estranhos a qualquer pessoa que não faça parte ou não conheça, pelo menos algo, da cultura daquela região. E está aí outra peça audaciosa da película, seu hermetismo. Para quem não conhece a cultura armênia fica um misto de frustração, confusão e até mesmo desalento, já que são muitos os símbolos mostrados e a falta de conhecimento para tentar destrinchá-los causa um crescente incômodo com o passar da exibição. Além disso, na era da velocidade e dos fortes apelos comunicativos, da fala em excesso, em que vivemos, 72 minutos sem diálogos e com cenas continuamente estáticas / lineares, é quase que inevitável um choque, que ajuda a aumentar o desconforto já citado acima.

Mas tanta simbologia sem uma aparente estrutura para entendê-la, pode gerar outro resultado: o do desprendimento. Depois do impacto inicial, o filme vai incitando à divagação, à contemplação, talvez por isso mesmo tenha sido proibido. O regime soviético temeu (talvez por não entender) o filme e o censurou, tentou o remodelar; Paradjanov chegou a ser punido. O convite, meio que indireto, a um mundo distante do “realismo soviético” então vigente, transformou o filme em instrumento perigoso dentro de uma ditadura.

Grande parte da obra se sustenta na forte estética e na arte da composição das cenas. Os cenários de “A cor da romã” são totalmente referentes aos desenhos medievais; assim como a romã, sua parte “de fora” (o exterior do cenário) é de um amarelo/acinzentado ou mesmo sem cor identificável, contrasta-se assim, com a parte “de dentro” (o núcleo das cenas, o figurino, em vários momentos, do profeta) do fruto que é rubra, viva, forte. A posição dos personagens em cada momento, a imagens que parecem afrescos, a sonoridade que é mais que audível, chega a ser visível, tudo se direciona de modo bem peculiar e especial, como se cada cena fosse um culto, deixando ainda mais única a forma como o filme foi composto.

É claro que não se pode falar de “A cor da romã” sem dizer que ele é cansativo, moroso, estranho. Por outro lado, é injusto não dizer que é um filme que desconcerta, justamente por essa ousadia de ser voltado para si mesmo, de ser preciso assistir mais uma vez para tentar-se uma maior interpretação dos significados (isso, é claro, se não houver desistência ainda na 1ª exibição). Um filme que desafia pelo seu jeito hermético, por sua contrariedade ao “comum”, por sua proposta para lá de exótica.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

"Cinema também é poesia" por Pedro Neves




Já nos primórdios do cinema seus defensores afirmavam que ele seria a síntese de todas as artes. Mesmo sem som e sem cores, já existia ali o potencial para ser pintura, literatura, teatro, música e poesia. Talvez por ser o cinema um meio tão aberto a diferentes experimentações visuais e auditivas filmes sobre artistas são tão comuns, a ponto de constituírem praticamente um subgênero da cinebiografia. Um subgênero, paradoxalmente, dos mais problemáticos.

Acontece que o cinema se estabeleceu como uma arte essencialmente narrativa. Artistas muitas vezes são figuras excêntricas e apaixonadas cujas vidas são cheias de drama (que o cinema ajudou e muito a criar essa percepção é um assunto que fica para outra resenha). Biografias de artistas costumam explorar as alegrias e sofrimentos (muitos sofrimentos) desses gênios incompreendidos, mas deixam de lado o principal motivo do interesse pelo biografado: a sua arte. Um aficionado a pintura que vá assistir, por exemplo, a Basquiat (Julian Schnabel, 1996) vai encontrar uma história comovente e um comentário interessante sobre a cena artística na Nova York dos anos 80, mas se sentirá frustrado se o que procura é a essência raivosa e explosiva dos grafites de Jean-Michel.

É por quebrar essa tendência que A Cor da Romã é um filme tão bem sucedido. Chamá-lo de cinebiografia é quase um disparate. Apesar de seguir em ordem cronológica todas as etapas da vida do poeta armênio Sayat-Nova, a película não se preocupa em fornecer dados historicamente corretos sobre o trovador. Procura habitar seu universo. E o universo de Sayat-Nova era a Armênia do século XVIII, um país disputado por otomanos e persas e atrasado em relação ao resto da Europa. A Cor da Romã recria o modo de vida medieval: os ritos religiosos e os mosteiros, a corte e seus jogos, a fabricação da renda e o tingimento dos tecidos. O folclore da região se faz presente nas canções tradicionais e na encenação dos rituais e manifestações artísticas, nas vestimentas típicas e nas casas de banho.

Mais impressionante é o profundo entendimento das formas de percepção da Idade Média. Inspirado em iluminuras, o diretor Sergei Paradjanov aboliu a perspectiva do seu filme. As cenas, planos estáticos compostos como tableaux vivants, são em geral filmadas diante de paredes ou tapeçarias, emulando o fundo neutro da iconografia bizantina. Nas cenas ao ar livre, a grama funciona como fundo pintado. Quando existe a necessidade de por em um quadro vários grupos de personagens executando atividades simultâneas, esses grupos são dispostos em diferentes níveis, como em uma arquibancada. Alguns planos são filmados de um ponto mais alto, mas de alguma forma Paradjanov consegue dar aos objetos (uma cama, por exemplo) a aparência achatada e sem ilusão de profundidade das pinturas medievais. Os atores assumem posições hieráticas e movem-se apenas o suficiente para descrever a ação desejada. As cores, finalmente, são intensas e sólidas, como as ilustrações de um manuscrito.

O que A Cor da Romã tem de mais admirável, entretanto, é a capacidade de não apenas falar de poesia, mas ser ele mesmo um poema. O filme, que não tem diálogos, se utiliza de vários recursos da linguagem poética. O ritmo é ditado pelos planos longos e estáticos separados por intertítulos que elucidam a narrativa ou citam canções do bardo. Metáforas abundam: a concha como o seio feminino; o verter líquido de um recipiente para outro, símbolo da temperança, aqui funcionando como a corte entre o poeta e a princesa. Imagens alegóricas perdem o significado para um espectador distante de uma cultura e de uma época, mas conservam intactos a beleza plástica e o poder evocativo, o sentimento místico. As rimas visuais estão na repetição de certos motivos: o livro cujas folhas viram com o vento, as romãs que mancham (tingem) o tecido, os galos que sangram e se debatem. E o vermelho, que escorre como suco, tinta e sangue em vários momentos. Nem tudo em A Cor da Romã pode ser compreendido em termos puramente racionais. Como em toda arte, é necessário intuição para apreciá-lo. Mas a carga de estímulos sensoriais e o papel essencial que estes assumem na leitura do filme são característicos mais do gênero lírico que da prosa.

O que A Cor da Romã alcança, finalmente, é uma raridade: partir de elementos cinematográficos (mise-en-scène, trilha sonora, fotografia, figurino, roteiro, enfim, tudo o que compõe um filme) para encontrar outra forma de arte. Biografar a vida de um artista através de sua obra. Fazer do cinema, verdadeiramente, poesia.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

"AMORROMÃ" Por Yuri Nascimento e Assis




Quando começa o filme, é natural ao olho buscar uma semelhança e então pautar-se, num ajuste de ótica. Mas aí então há um desafio: se pinta a novidade, é preciso inventar um parâmetro a partir de si. Se surge a paixão, esforçar-se é recompensa. Eis aí a primeira vista. Na batalha sem vencedor, ganha o primeiro que se render.
Em 1968, Sergei Parajanov, então imerso em signos armênios em função da criação de seu último documentário, inventou uma cor para romã. Decidiu, primeiro, que não faria história: o filme inteiro dar-se-ia a contar o avesso lado de dentro do poeta Sayat-Nova. Para tal, Parajanov utilizou diversos poemas do dito cujo e prezou por sua interpretação da obra do poeta.

Depois, requereu uma linguagem (a)típica de sonhos, acordando, sem parcimônia, imagens dizendo. Iluminou seu cenário de cores envelhecidas, como o bordô, o dourado e o marrom, para constituir uma aura medieval em torno do também ashik (espécie de trovador típico do Leste Europeu) poeta. Retorceu e rejuntou formas que se encurvavam diante do bronze metal. Ainda, evocou máscaras de ferro, castelos, reis, princesas, mosteiros, santos, arte bizantina: na plural procissão de igreja.

Postos a cena e o assunto, Parajanov coloca os atores em dança hipnótica e a partir daí é que surge sua poesia vinda da poesia de Nova. Produz, então, movimentos. Tudo começa aos poucos a rastejar e ora fica pendulando para garantir a entrega, intrigando. Para não fazer barulho, liga música que acompanha – e o olho se empapuça diante de tanta coisa a ser dita – sentida – pressentida – acima de tudo adivinhada. É um filme de intuições.

Parajanov pretende conduzir o espectador a uma solidão de quarto vazio. O longa-metragem atiça feito serpente para que o sozinho no caminho comece a dialogar. O mais puro sentir jorrando. Assim a romã vai se colorindo e ultrapassa a poesia Parajanov-Nova: agora quem poeta é o você-eremita vendo. Como que alquimia.

“A Cor da Romã” prima por uma narrativa nada convencional. Se outros filmes que também têm em si tal característica reutilizam (em outras direções, claro) recursos comuns a qualquer filminho de grande bilheteria – incluindo nessa categoria as comédias românticas, os filmes de drama e ação altamente divulgados no mercado contemporâneo – a película de Parajanov se destitui completamente de um elemento essencial: o diálogo.

O sentido não vaga nas sentenças: tudo fica recluso em silêncio até o último segundo de filme. O que se destaca é o mise-en-scène: este, sim, repleto de significado – e a intensa interação dos atores com o fundo profundo por detrás, formando assim o tableau vivant. O diretor funda dessa forma uma mitologia transcendental que se torna a peculiaridade de “A Cor da Romã”. Como se de repente toda mera retratação fosse uma conversa interminável com a paixão de olho.

Para se entender a cor da romã é necessário acima de tudo amor. Assim que o filme consegue capturar o espectador, em processo de paixão, o trabalho está feito. Todo esforço comunicativo ali presente transforma-se em romãs em ponto certo de satisfação.

Quem come a romã no inferno de Hades passa a pertencer: e não dá para voltar atrás – e não se é para voltar atrás. Romã é fruta que se rói até o caroço. E finalmente tendo a semente reluzindo em mãos: troféu que se rende ao perdedor.

sábado, 9 de maio de 2009

"Convite à sofisticação" por Gianni Paula




Logo cedo se apercebe que o sofisticado não é para todos. Assim, para mim, nem sempre. Diante da obra de Paradjanov, o desconexo me ausenta e a belíssima imagem, conduzida em valsa lenta, me põe em lugar incômodo.

Explico. “A cor da romã”, realizado em 1968, conta a vida do poeta Sayat Nova e seus arredores valorativos, os ares da cultura armênia. Porém, se é do poeta a vida que consideramos, talvez outra abordagem seja digna. É isso que Sergei Paradjanov propõe, revelar o biográfico que se opera de dentro para fora: a imagem como compromisso supremo do sensório. É com muito esmero que cada quadro se apresenta: são as cores, as vestes, os gestos, a expressão: ou mais que isso, é a visão levada a sério.

Paleta de dourado, bronze, cobre, cores de terra, romã e vinho tingindo o cenário e os personagens que se posicionam em uma composição severa. Em outros termos, equilíbrio dos elementos dispostos. Além de igual comprometimento da movimentação: não existe desperdício de trejeitos ou desatenção do ator para com a ação. Se narrar como se ritual.

O filme evidencia a convergência dos suportes de artes, nele é notório um hibridismo com o técnico da pintura e o cênico teatral. “A cor da romã” inclui na sua proposta uma abdicação do diálogo, fazendo do silêncio, este recurso comunicativo polifônico e problemático, seu lugar expressivo. Paradjanov oferece um cinema essencialmente plástico, descortinado por uma câmera fixa que não necessariamente entedia, apenas desperta uma estranheza naqueles acostumados com um formato de cinema específico: de cortes, velocidade e venda.

Entretanto, “A cor da romã” é uma faca de dois gumes. Como dito, nem todo sempre, nem para todos é a sofisticação. Antes de tudo, ao filme muito respeito é merecido: sua complexidade visual centrada, maturidade de uma obra que tem consciência de si, seqüência de alegorias coerentes. E muita poesia e muita Armênia. Ao assistir esta obra é necessário alto grau de entrega: mergulho. É essa entrada sem precedentes que permite a fruição, a vertigem da plenitude estética que não cobra do filme explicações. Ocorre que, em grande parte do público, o filme vai instituir um vazio de sintonia, como se aquele desenrolar cultural que está disposto diante dos olhos do telespectador conduzisse a pessoa para um lugar extremamente confuso em termos conceituais: a abstração proposta pela beleza gera o desconforto naquele que não
consegue decodificar uma intenção que parece querer ser descoberta.

É esse aspecto um tanto anacrônico do filme, além das questões práticas de distribuição, que o torna impopular, mas também revolucionário. Quando lançado, ele gerou verdadeiro rebuliço na vida de seu diretor que foi perseguido, censurado e proibido de criar novos delírios. Primeiramente, porque Paradjanov tinha escolhido falar de uma cultura que não era vista com bons olhos; Depois, os dirigentes russos devem ter desaprovado a obra por não saber do que ela tratava, percebendo a incitação de alguma coisa que, assim como eu, eles não conseguiam entender. Será se? O que particularmente posso afirmar é que o filme me rendeu uma ambígua sensação de vazio e continuo sem saber qual é a cor da romã.