terça-feira, 16 de junho de 2009

“Os desafios da cor da romã” por Rafael Leandro


Romã. Fruta não muito conhecida, de aspecto meio estranho, de um colorido opaco por fora, mas bem viva por dentro. A fruta que dá nome (pelo menos o nome com que a produção foi exportada para a maioria dos países) ao filme “A cor da romã” (“Sayat Nova” 1969), pode, de um modo meio exagerado, dizer alguma coisa sobre essa película bastante audaciosa.

Filmado em 1969 pelo elogiadíssimo, mas nem tão conhecido, Sergei Paradjanov, “A cor da romã” traz a vida de Sayat Nova (1712-1795), poeta e trovador tido como um dos principais nomes da cultura armênia e cujas obras marcam a literatura do século XVIII naquele país. No entanto, não espere uma biografia filmada ou um relato histórico da vida de Nova, o que se vê é a exposição erudita da poesia do mesmo, reunida a uma miscelânea de ritos e aspectos totalmente ligados ao mundo armênio e a região do Cáucaso.

Paradjanov extrapola a fronteira do tradicional e do normal no cinema, sua ousadia chega a assustar. O filme não tem diálogos, as cenas são paradas, plano fixo, trilha sonora plenamente lírica, a composição das imagens está acima de tudo, principalmente do enredo. Da vida até a morte do profeta Sayat Nova é mostrado, de uma forma bem ritualística, extratos de poesias, cânticos e solenidades que são totalmente incomuns e estranhos a qualquer pessoa que não faça parte ou não conheça, pelo menos algo, da cultura daquela região. E está aí outra peça audaciosa da película, seu hermetismo. Para quem não conhece a cultura armênia fica um misto de frustração, confusão e até mesmo desalento, já que são muitos os símbolos mostrados e a falta de conhecimento para tentar destrinchá-los causa um crescente incômodo com o passar da exibição. Além disso, na era da velocidade e dos fortes apelos comunicativos, da fala em excesso, em que vivemos, 72 minutos sem diálogos e com cenas continuamente estáticas / lineares, é quase que inevitável um choque, que ajuda a aumentar o desconforto já citado acima.

Mas tanta simbologia sem uma aparente estrutura para entendê-la, pode gerar outro resultado: o do desprendimento. Depois do impacto inicial, o filme vai incitando à divagação, à contemplação, talvez por isso mesmo tenha sido proibido. O regime soviético temeu (talvez por não entender) o filme e o censurou, tentou o remodelar; Paradjanov chegou a ser punido. O convite, meio que indireto, a um mundo distante do “realismo soviético” então vigente, transformou o filme em instrumento perigoso dentro de uma ditadura.

Grande parte da obra se sustenta na forte estética e na arte da composição das cenas. Os cenários de “A cor da romã” são totalmente referentes aos desenhos medievais; assim como a romã, sua parte “de fora” (o exterior do cenário) é de um amarelo/acinzentado ou mesmo sem cor identificável, contrasta-se assim, com a parte “de dentro” (o núcleo das cenas, o figurino, em vários momentos, do profeta) do fruto que é rubra, viva, forte. A posição dos personagens em cada momento, a imagens que parecem afrescos, a sonoridade que é mais que audível, chega a ser visível, tudo se direciona de modo bem peculiar e especial, como se cada cena fosse um culto, deixando ainda mais única a forma como o filme foi composto.

É claro que não se pode falar de “A cor da romã” sem dizer que ele é cansativo, moroso, estranho. Por outro lado, é injusto não dizer que é um filme que desconcerta, justamente por essa ousadia de ser voltado para si mesmo, de ser preciso assistir mais uma vez para tentar-se uma maior interpretação dos significados (isso, é claro, se não houver desistência ainda na 1ª exibição). Um filme que desafia pelo seu jeito hermético, por sua contrariedade ao “comum”, por sua proposta para lá de exótica.

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