domingo, 21 de junho de 2009

"Dançando no escuro" por Wilson Rocha


ESTE TEXTO TEM SPOILERS!!!!



Lars Von Trier tem um estilo conhecido por todos nós e seus filmes sempre apresentam uma opinião altamente crítica contra o seu alvo preferido, o “American Way Of Life”.
Em Dançando no Escuro, um musical drama, tendo como protagonista principal a exótica e vanguardista cantora Björk, o diretor exercita esta sua psicose mais freqüente depois do seu engajamento na promoção do Dogma 95 (movimento cinematográfico liderado por ele, com a função de se dar uma nova estética – ou se retomar – a arte cinematográfica, ou seja, a criação de um cinema de autor baseado em 10 regras ou ‘votos de castidade’).

Em linhas gerais, o filme, à primeira vista, pode parecer um dramalhão encomendado para transformar qualquer platéia num imenso pudim de lágrimas. Selma, uma imigrante do então existente país comunista da Tchecoslováquia, refugia-se no EUA pretendendo juntar dinheiro suficiente para pagar a cirurgia do seu filho que sofre de uma doença genética e degenerativa da visão que vai cegando progressivamente e da qual a própria Selma é portadora num estágio mais avançado e sem cura. Sentindo-se culpada pela herança nociva passada ao filho, o único presente que pode dar a ambos é de lhe recuperar o seu sentido de visão. Trabalhando arduamente numa fábrica (onde se passa uma cena memorável coreografada com a música dos barulhos feitos pelas máquinas) até ser demitida por erros causados pela sua visão já comprometida, Selma sucumbe ao seu destino. Seu maior erro foi ter confidenciado suas intenções e sua poupança ao policial e senhorio. Após conseguir boa parte do valor necessário para o tratamento do seu filho, ela tem suas economias roubadas por seu vizinho e senhorio e acaba por assassiná-lo, num momento de desespero extremo para reaver as suas economias. Neste momento o espectador se confunde diante do que é certo ou errado e diante das alternativas.

O desfecho de toda a ambientação do filme possui forte poder de comoção, contudo, a idéia de Lars Von Trier vai além do efeito emocional visível. Ele consegue ser mais gutural do que pensamos. O diretor utiliza o elemento musical, gênero cinematográfico tipicamente americano, dentro do filme e, é desta forma, que a personagem principal quase cega percebe o mundo ao redor e tenta sobreviver às suas dificuldades. As lacunas de sua vida são preenchidas pelos seus delírios em que cria coreografias hollywoodianas, dos musicais (gênero do qual é fã absoluta),nos momentos menos favoráveis, pois só assim consegue enfrentar as privações de sua vida. Sua única perspectiva de realização e contento, fora o prazer da música e de estar participando de uma montagem da peça A Noviça Rebelde num teatro local, as sessões de cinema de musicais antigos, é a cura de seu filho.

A angústia de Dançando no Escuro parece não estancar nunca e o fato de fazer referência aos musicais clássicos dá um tom mórbido ao filme, já que o respectivo gênero tem a função tradicional de transmitir leveza e não desespero numa escalada vertiginosa como a que presenciamos.

O grande toque de genialidade de Lars Von Trier é a forma como ele inverte as sensações e utiliza os recursos simples de edição intercalando o eixo narrativo principal com números musicais, que são devaneios da personagem central. À medida que o filme avança os números se tornam apoteoticamente mais devastadores numa alienação de escapismo surreal por vezes fúnebre. A Personagem Selma desfruta de um status idílico a qualquer ser humano. Extravagantemente virtuosa diante dos acontecimentos que se precipitam contra ela, Selma e sua passividade perante os fatos chegam a ser irritantes.

O caráter transcendente parece espumar neste sacrifício em nome da honra de uma promessa que ao espectador parece ser irrelevante, mas que para Selma vale uma existência. Na defesa desta honra ela não hesitara em privar-se de sua própria vida, deixando de ser apenas vítima e tornando-se, também, agente de seus maiores infortúnios. Para provar sua falta de confiança frente ao sistema, Lars Von Trier destaca uma personagem coadjuvante também imigrante, assim como Selma, na personagem de Kathy que é a sua melhor amiga e através dela recebe apoio nos momentos cruciais.
Rodado numa perspectiva de filmagem naturalista, utilizando-se de câmera manual e muitas tomadas externas (num apelo que faz jus ao próprio Manifesto do Dogma 95 e ao cinema escandinavo de origens, herdado de cineastas como Mauritz Stiller, Victor Seajostrom, Carl T. H. Dreyer, Ingmar Bergman), Dançando no Escuro acaba envolvendo o público na história tendo em vista sua ausência de formalismo e seu senso de documentário. A naturalidade dos planos e o filme digital 35 mm utilizados dão ar de filme caseiro e anticomercial.

Destaco duas cenas no filme que merecem menção. A primeira é onde há a transferência do alter ego de Selma para as personagens do policial e de sua esposa, no momento que se segue ao assassinato e ela se vê recebendo conselhos “musicados” para fugir do local do crime. A outra cena de grande intensidade se dá em sua cela no momento em que é levada à execução e a ausência do som paralisa os seus movimentos. A policial feminina (incorporando um traço de humanização do sistema penal americano que mais parece um tribunal de inquisição) estimula que ela perceba o barulho de seus passos e assim ele consegue percorrer o corredor da morte. Neste instante temos a nítida impressão e a certeza de como humano e real é o seu sofrimento. A falta da música em sua forma mais elementar, o som, lhe tira o seu meio mais recorrente de metabolizar o seu sofrimento e assim Selma não consegue reagir.

Dançando no Escuro não cria heróis, mas demonstra fragilidades e expõe o sistema capitalista antropofágico. A crítica aos Estados Unidos é clara. Selma, que foi para o país em busca de uma solução para seu problema, é explorada e acaba tendo um fim trágico. Poucos não irão se revoltar e se comover com a história, que é triste e tem um nível de frieza e distanciamento não visto em produções americanas tão acostumadas a ‘happy endings’. Trier é impiedoso com a personagem central, assim como a América é com os que se aventuram por lá.

2 comentários:

  1. caramba!!! como vc conta o filme?...deveria avisar antes que teria spoilers!!! SEM GRAÇA!

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  2. parabens pelo texto!!...realmente expressa o que vi no filme..que eh tambem maravilhoso por sinal!

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