domingo, 14 de junho de 2009
"Prefiro Bob ao tédio" por Ingrid Maiany
Filme de Jim Jarmusch é quadro de Cézanne. Natureza morta de gente, gente comum. O diretor consegue como nenhum outro retratar seres marginalizados prisioneiros da mesmice cotidiana, escravos do tédio que, como diria Cazuza, é o sentimento mais moderno que existe.
Interstício da nouvelle vague que prima pelo insólito do estilo americano de vida, o discípulo de Nicholay Ray conseguiu com o aclamado “Estranhos no paraíso” uma posição de destaque no cinema da década de 80. Posição essa que se firmou com o posterior “Down By Law”, de 1986. O longa-metragem em preto e branco foi fotografado por Robby Müller de maneira peculiarmente sensível. Mergulhamos na monocromia e, tal a personagem que está sentada na cadeira de balanço na abertura, somos convidados a ver “como a luz muda”, perpassando níveis extremamente brandos ou assaz intensos, de acordo com as minúcias de cada cena.
É ao som da trilha sonora elaborada por John Lurie e Tom Waits – união de jazz e rock à percussão de Naná Vasconcelos – que conhecemos os dois primeiros protagonistas, interpretados pelos próprios músicos. Jack e Zack, além da similaridade de nomes, possuem uma analogia de vidas. Ambos são a escória em superfície da grande panela americana, entregues à passividade e diluindo-se no ar. O terceiro ingrediente é Roberto, vivido por Roberto Benigni, um italiano atrapalhado que possui parco domínio da língua inglesa e carrega consigo um caderninho com expressões e anedotas.
Vítimas de sua inércia, Zack e Jack acabam presos ante uma tentativa frustrada de conseguir dinheiro fácil. Uma vez juntos, partilham o marasmo de uma existência limitada e odeiam-se mutuamente ao notarem-se reflexos um do outro, espelhos de sua falta de perspectiva. A passagem dos dias, ilustrada por Jarmusch através de planos longos e estáticos, só é percebida pela quantidade crescente de traços de giz na parede. Então Bob, detido por cometer um assassinato no melhor estilo comédia pastelão, une-se aos dois, conferindo beleza a, até nesse momento, triste história. Dessa maneira, o giz vira janela e, por trás de um jocoso trocadilho, liberdade toma nome de sorvete.
Numa metáfora para a fuga da apatia proporcionada pelo cinema, o estrangeiro anuncia ter descoberto, inspirado em um filme, uma maneira de escapar da prisão. Nesse ponto encontramos uma incongruência e o cineasta que defende o valor dos momentos aparentemente sem importância, chegando mesmo a filmar uma película que retrata o período decorrido nas viagens de taxi (Uma noite sobre a Terra, 1991), despreza o processo de fuga e nos mostra o trio já fora da cadeia.
Todavia, os muros não estavam restritos ao presídio e, mesmo lá fora, a idéia de caos permanece. Os personagens vagam em círculos até encontrarem uma velha cabana de notável semelhança à cela que antes ocupavam. Precisam vencer sua inaptidão de transpor os problemas, e Bob se mostra gradualmente o instrumento necessário para essa vitória. É o personagem de Benigni que vai em busca de comida enquanto os outros dois estão entregues ao desânimo; uma vez sozinhos, Jack e Zack parecem incapazes de sobreviver. São devido a Bob todas as ocasiões contentes do filme, e apenas com ele os personagens ganham alguma atividade.
Finalmente, os três encontram a estrada e, mais adiante, uma hospedaria. Mais uma vez, os quase homônimos não se movem e é Bob quem tem coragem de entrar e pedir ajuda. Cansados de esperar a volta do amigo e exaustos pela fome e pelo frio, resolvem verificar o que se passa dentro da pousada. Deparam-se com Bob sentado à mesa com uma moça, comendo e gargalhando. Trata-se de Nicoletta, uma italiana como ele, papel de Nicoletta Braschi, esposa de Benigni na vida real. E, assim como em um conto de fadas, o casal imigrante se apaixona e Bob ganha um lugar para viver.
Zack e Jack parecem, enfim, terem percebido a necessidade de movimentar-se e recusam a oferta de Bob para permanecerem com ele e Nicoletta. Buscando distanciar-se daquilo que sabiam um no outro e que tanto os incomodava, decidem seguir caminhos distintos. A separação importada na estrada bifurcada não é outra coisa senão a tão sonhada liberdade. Mesmo sem certeza de para onde iriam, os dois foram. E ir já era um grande começo.
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